"Cresce a injustiça, agigantam-se os poderes dos maus" ,muito antes e bem depois de Ruy
Sempre gostei de trabalhar com estivas, sacarias, enlatados e produtos nacionais industrializados. Em Belém eu não vendia produtos alimentícios de fabricação caseira, nem mesmo industrializados à granel, tudo era embalado pelo fabricante, de acordo com as normas de Saúde Pública. Mas cidade grande, problemas também grandes.
Foi o que aconteceu em Belém do Pará, depois de receber a visita de um fiscal da Saúde.
Depois de bisbilhotar meu estabelecimento, com ar de arrogante autoridade ele me disse: "O senhor vai ter que impermeabilizar as paredes e colocar estrado em toda extensão do piso. As mercadorias não podem ficar em contato com a umidade.
Julguei a medida desnecessária, mas ordens são ordens. Procurei uma madeireira, comprei tábuas e barrotes, contratei um carpinteiro num final de semana e na segunda-feira toda mercadoria já estava sobre os estrados. Naquele mesmo dia, o fiscal voltou e me deu quarenta e oito horas para que mandasse impermeabilizar as paredes, senão, lacraria as portas de meu estabelecimento.
Na terça-feira cedinho chamei minha secretária e avisei. Vou à Secretaria de Saúde Pública, se até ás quatorze horas não retornar, você deve ligar para o número xis... E lhe passei o telefone de Quinel. Sai desorientado, perguntando a mim mesmo. Por que tanta barreira? Por que tanta perseguição ao homem honesto? Bem dizia Ruy Barbosa: “Cresce a injustiça, agigantam-se os poderes dos maus...”
Na Secretaria de Saúde, recebi uma senha. Esperei duas longas horas até chegar a minha vez de entrar na sala do Secretário. O homem de cabeça grande e olhos esbugalhados, cuja imagem eu só podia ver da cintura pra cima, fechou o cenho, enrugou a testa, colocou óculos sobre a escrivaninha e me perguntou com uma voz de trovão: "Que o trouxe aqui?" Vim tratar de uma autuação contra a firma tal..." O senhor é o dono?" Sou.
O Secretário abriu a gaveta do birô, puxou um pacote de documentos entre os quais se encontrava o processo contra minha empresa. Escanchou um par de óculos no pau da venta e leu todas as minhas obrigações, todas as providências que deveria tomar e o parecer do agente fiscal, propondo o fechamento, caso não fossem cumpridas as exigências da fiscalização.
Naquele momento, não sei que poder se apoderou de mim. Bati em meu pulso e exclamei: Dr. O sangue que corre nessas veias é de homem honesto, mas é o mesmo que corre nos assaltantes da Estrada Nova e do Cais do Porto. Pode ser que estejam lá por opção, mas prefiro acreditar que foram empurrados pela sociedade em circunstâncias semelhantes a esta que estou vivendo agora. Vim para esta cidade para trabalhar, crescer e ajudar a cidade, pago todos os impostos e sou um intermediário entre o produtor e o consumidor. Sou útil à sociedade ao exercer uma atividade comercial, mas não estou isento de amanhã ficar ao lado daqueles com quem jamais imaginei estar.
Acredito que aumentei o tom de voz, porque senti uma mão sobre meu ombro e ao olhar de soslaio, percebi que se tratava de um policial pronto para agir, se fosse necessário. Eu também estava pronto, esperando alguma reação. Ficamos parados, por alguns segundos. O chefe relaxou. Pegou o processo e rasgou em quatro partes. Tirou novamente os óculos, subindo-os até encontrar um ponto de equilíbrio, acima da testa, no meio de uma cabeleira cheia e preta. Falou mansamente: "Volte! Vá trabalhar. Não vou lhe mandar para a Estrada Nova nem para o Cais do Porto. Garanto que ninguém mais vai lhe incomodar.
De fato, trabalhei mais dois anos neste mesmo ponto, e, embora tenha colocado toda mercadoria, sobre os estrados e afastada das paredes, não azulejei o imóvel, nem fiscal nenhum me perturbou mais.
SILVA, Francisco de Assis; LIMA, Adalberto. O Brasil nosso de cada dia.