Dois raios num só ombro

Eu tenho um amigo, que há muitos anos cumpre um ritual. Todo dia 12 de outubro, dia da padroeira do Brasil, vai até Aparecida do Norte, assiste a primeira missa e retorna para sua cidade, que fica no interior, cerca de cem quilômetros de São Paulo.

Outro dia, numa visita em sua, casa ele me contou um episódio que se não fosse a amizade de longa data e a confiança que deposito nele, taxaria imediatamente como história daquelas de pescadores, que geralmente, é o que dizem, são exageradas e mentirosas.

Esse meu querido amigo é homem das antigas, ainda não aderiu a certas tecnologias, de modos que não possui celular nem computador, aliás, tenho tentando convencê-lo das vantagens da informática e creio que em breve ele fará parte desse necessário grupo dos informatizados e quem sabe até será mais um cadastrado nesse Recanto, o que seria ótimo, pois sou conhecedor dos seus textos e sua presença aqui só acrescentaria.

Como todos os anos chegou na cidade por volta das vinte e três horas e dirigiu-se até a basílica e junto com centenas de romeiros ficou no aguardo da primeira missa. Depois de cumprido seu dever religioso voltou à rodoviária, e antes de comprar sua passagem, foi até o orelhão e ligou para esposa. Recebeu dela a notícia que o seu filho mais novo, que reside no Rio de Janeiro, estava vindo ao interior de São Paulo visitá-lo, e informado pela mãe que o pai estaria em Aparecida do Norte, sabendo que ele não possui celular, pediu para ela avisá-lo, caso ele ligasse, que passaria na rodoviária daquela cidade e daria uma carona para ele. Para o leitor que desconhece a região, o Santuário de Aparecida está localizado ao lado da rodovia que liga São Paulo X Rio de Janeiro.

Um pouco indeciso entre comprar a passagem ou esperar o filho, foi até o guichê para saber como estava a lotação do ônibus que faria a primeira viagem daquele dia. Foi informado que ainda restavam algumas passagens, mas a procura estava grande e se ele não comparasse logo correria o risco de não embarcar.

Deu um giro pelo local na esperança de encontrar o filho, que a aquela altura, segundo o relato da esposa, já deveria ter chegado. Na volta da caminhada resolveu comprar a passagem. Não queria correr o risco, e caso o filho chegasse antes do embarque perderia a passagem, mas teria um retorno mais confortável.

Com essa decisão, estava a caminho do guichê quando alguém bateu forte no seu ombro e ele virou-se bruscamente na certeza de ver seu filho e deu de cara um desconhecido, e antes que ele dissesse qualquer coisa o homem respirou freneticamente junto ao seu nariz e perguntou:

- Eu estou cheirando pinga senhor? Estou senhor?

Sem entender nada meu amigo disse ainda assustado:

- Não!

Em seguida o homem segura a mão dele e esfrega nas suas a fim de ele veja os calos nelas existentes, e afirma:

- Veja senhor, sou trabalhador.

Ainda atordoado com tudo aquilo ouve do homem a seguinte história:

- Senhor, eu vim de uma cidade do interior para pagar uma promessa pra minha santinha querida. Eu trouxe dinheiro para a comida e para pagar um pouso, mas senhor, num passeio pela cidade me encantei com umas coisas bonitas na feira e pensei... “Bem que eu poderia dormir num banco da praça e com dinheiro economizado levaria uns presentinhos para o pessoal lá de casa”. E assim eu fiz, senhor. E quando acordei hoje pela manhã senhor, tinham levado meus presentes e minha carteira, estou sem nada senhor. Será que o senhor não pode me ajudar com dez reais?

Emocionado com a história, meu amigo tira o dinheiro do bolso entrega ao homem que sai alegre e agradecido.

Entretanto, antes de retomar a caminhada, rumo ao guichê, ouviu uma voz:

- Pai!

E dessa vez era seu filho. Na viagem comentou o acontecido e acrescentou ao filho:

- Que coisa engraçada, se aquele homem não tivesse aparecido exatamente naquela hora, eu teria comprado a passagem antes de você chegar e teria gasto mais do que a ajuda que dei a ele. Tem coisas que não tem explicação...

Uma semana depois meu amigo, que é artista plástico, estava montando sua barraca na Praça da República, em São Paulo, quando alguém toca forte em seu ombro...

- Eu estou cheirando pinga senhor? Estou senhor? ...

Sim, caro leitor, parece inacreditável, mas era o mesmo larápio sem hálito de álcool e de mãos calejadas, com uma outra versão daquela história pra lá de convincente!

Diante da reação raivosa do meu amigo, com xingos e detalhes aos gritos do encontro anterior, esgueirou-se na multidão a procura de outros ombros...

Dalfré
Enviado por Dalfré em 19/01/2008
Reeditado em 19/01/2008
Código do texto: T824102