UM CHOQUE,  UM APRENDIZADO (1)


          Naquela tarde, eu tinha um compromisso. Havia marcado apenas para depois do almoço, sem um horário pré-determinado. Ainda bem. Faria uma visita a uma comunidade para recuperação de dependentes químicos, fundada e mantida por um grupo evangélico. Eu iria conhecer a comunidade, os responsáveis e os internos, com possibilidade de prestar serviço voluntário, na área de apoio pedagógico. O convite viera de uma psicóloga. Trabalhamos juntas numa outra instituição e nos encontramos uma vez por semana. Eu andava resistindo à idéia porque não tinha certeza de estar preparada, considerando-me, talvez, sem qualificação para tal trabalho. Em função de algumas mudanças, porém, fiquei com um período livre e entendi que era hora de agendar a tal visita.

          Até certo ponto, o percurso era conhecido. Para a parte desconhecida, eu tinha um roteiro: Entrar à direita ao lado da garagem de tal empresa de ônibus; passar sob um viaduto da linha de trem. Depois, tudo era simples. Esquerda e vá até o fim; direita e vá até o fim; estrada de terra; direita, esquerda, direita, direita. Fácil assim, mas coloquei o celular para carregar, porque a bateria estava fraca, acabando.

          Saí calmamente, percorri um trecho de estrada, entrei no trevo de acesso no local indicado, dirigi mais alguns quilômetros por outra rodovia e cheguei à garagem da empresa de ônibus. Entrei à direita, errei e quase caí na pista oposta. Retornei, passei sob o túnel da ferrovia, virei à esquerda e fui até o fim. Era o fim mesmo. Diante da portaria de uma empresa, constatei que a rua acabava ali. Telefone? Esquecera em casa, carregando... Desci, fechei o carro e fui perguntar, aproximando-me com cuidado do guarda. Disseram-me que era do outro lado da pista. Garanti que não. Nisso eu estava segura. Depois de algumas conversas na portaria, veio a informação: “-Só esta entrada está errada. Volte à avenida, e aí sim siga esse roteiro.” Então fui. Entre esquerdas e direitas até o fim, cheguei ao fim do mundo! Resolvi perguntar novamente. Vi dois vendedores saindo de um carro e perguntei. Também estavam perdidos, responderam. Restou-me o bar. Um bando de homens na calçada, tomando cerveja. Ou batia numa casa ou perguntava no bar. Indecisão momentânea. Com uma camiseta decotada e uma camisa por cima que não escondia muita coisa, lá fui eu, tão aprumada quanto pude. Entre, “não é aqui, nunca ouvi falar” e outras frases mais, percebi que eles sabiam, sim, onde era e esticavam a conversa. Isso porque um deles finalmente explica: “Tenho que voltar até o pontilhão e seguir em frente, porque virei à direita, mas devia ter virado à esquerda. Ele disse que sabia de um, mas não lembrava de todos os nomes que eu mencionara.” Agradeci, segui em direção ao carro e, bem, não foi um exagero, nem mesmo algo ofensivo, mas pude perceber os murmúrios. Cheguei à estrada de terra. Direita, diz o roteiro. Segui as instruções e estava novamente perdida. Parei e perguntei a um transeunte. Não sabia, mas indicou-me um lugar onde alguém poderia saber. Vi um carro da polícia. Perguntei. O policial disse que era para eu seguir em frente. Cheguei a um monte de terra. Novamente errado. Quando estava voltando cruzei outra vez com o policial, indicando-me um lugar do outro lado do trilho. –Mudou de nome, ele diz. Ao chegar, aliviada, escolhi uma sombra e estacionei. Na tabuleta de “recepção”, perguntei pela psicóloga: “--Não tem ninguém com esse nome aqui, não (creio que nem mesmo uma psicóloga havia, pela aparência do local). Não é aqui, não! Aqui é o desafio jovem sim, mas há vários. Esse que a senhora procura, é outro. Vá em frente, tá vendo aquela primeira travessa, à esquerda? Não “vire”, não. Depois, tá vendo a segunda? Naquela também não vira, não... Na terceira, sim, a senhora pode virar à esquerda, e vai até o fim, que vai dar bem na portaria...” É bem verdade que do lado direito estava o leito da ferrovia, que eu acabara de cruzar!

          Estou do outro lado da realidade. As construções são desordenadas, casas sem reboco, não chega a ser um lixão ou uma favela, mas o lugar não tem um aspecto agradável, urbanizado. Chegando ao local, fiquei sabendo que minha amiga estava ocupada e pedia para eu esperar um pouco. Escolhi ficar numa varanda, olhando o jardim.

          Mudança de foco. Tudo é bem cuidado, ajardinado, pintado de branco, florido. Naquele silêncio, meus pensamentos recolhem impressões do dia anterior. Conhece a ti mesmo, disse o filósofo. O que pretenderia? Ao procurar conhecer-me, fico cada vez mais confusa, porque nesse caminho, não há fim.
          Posso perceber que faço determinadas coisas, movida pelo orgulho. Quando admito isso e me aborreço, preciso reconhecer que faço isso por orgulho (porque queria não ter errado). Então choro, envergonhada, e é novamente o orgulho, porque não aceito ser imperfeita. Em seguida, percebo a simplicidade de outras pessoas e me deparo com a inveja e, se penso que gostaria de ter a naturalidade delas, me deparo com a cobiça! Não estou em prantos, mas as lágrimas escorrem-me pelas faces. Resolvo expressar que estou triste, para desabafar. Então recebo manifestações de afeto, quando não esperava, acima do esperado, e são algumas lágrimas a mais... Por fim isso passa, mas eu estou na minha periferia e sabe-se lá por que (aliás, sei por que, é para que eu venha a refletir) o dia continua a oferecer-me coisas boas.

         Então, sentada ali na varanda da portaria, eu vejo as andorinhas, aos montes. Essas aves pequenas e fortes são ágeis e não param. Não são como os pardais que eu estivera observando, numa atividade repetitiva de provisão. Elas têm um vôo rápido e alargado, abrangente, circular. Voam em direção umas das outras, e quando penso que irão chocar-se, desviam. Parece-me que elas voam, não apenas porque essa é a sua forma de locomoção, porque estão procurando alimento (e talvez estejam!). Parece-me que o seu vôo tem outros motivos. O formato das asas no vôo, os mergulhos rápidos, a pequena pausa com as asas junto ao corpo, planando para um descanso, os impulsos para o alto são admiráveis coreografias. São aves migratórias. Precisam desenvolver resistência. Não param de exercitar-se.

          Novamente de volta ao banco, dou-me conta de onde estou, do que me trouxe ali. Uma forte emoção toma conta de mim novamente, como no dia anterior. Mas, creio mais na validade das lágrimas que escorrem agora, suavemente. Para poder ajudar, preciso desenvolver resistência, como as andorinhas. Necessário se faz que eu desenvolva certa força interior, para que possa atuar, sem envolver-me ou desestruturar-me. Nesta cidade, a cidade das andorinhas, também me vale a idéia de que “uma andorinha não faz verão.” Apenas o meu trabalho não pode resolver tão grande problema, mas sei que vou fazê-lo, acreditando que dentro de um grupo faço a minha parte, e que outras andorinhas virão.