Quando o gás acaba - E sempre nos pega de surpresa
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Quando o gás acaba no meio do preparo da refeição, o que nos resta fazer? É incrível a capacidade que o botijão tem de escolher sempre o pior momento pra decidir encerrar o seu trabalho. Não foi a primeira vez que isso me ocorreu. Talvez tenha sido a terceira ou quarta, ora de manhã, ora de noite. E lá vou eu, com minha habilidade manual de elefante, soltar a válvula, carregar a carcaça até o carro e procurar um ponto de venda que esteja aberto. Por coincidência, em todas as vezes que precisei fazer isso, estava chovendo, só pra ajudar ainda mais. Mas, prefiro eu mesmo ir a uma loja a esperar a entrega ou aguardar o toque da musiquinha fofa do caminhão ao passar pela minha rua. Se eu fosse alguém mais esperto, teria um botijão reserva. Mas, o preço de um novo está um absurdo.
Cozinhar é um processo de paciência e resiliência. Eu já imaginava isso, mas só fui ter certeza quando comecei a praticar essa arte, há três anos. Antes, não sabia nem mesmo preparar um arroz. Me preocupava apenas em pedir um botijão novo, quando necessário. Fora os anos em que morei num prédio em que havia gás encanado. Nesse caso, bastava pagar o boleto supercaro da Ultragaz e tudo estava resolvido. Eu não tinha ideia das etapas de preparo de um alimento. Não sabia, muito menos, do orgulho que advém de uma refeição bem preparada. Apesar de todo o trabalho, o prazer que surge ao ver o prato feito e ao sentir o sabor, não tem preço. Mas, não quero falar aqui sobre cozinhar. Quero falar de gás. Porque o gás sempre acaba quando não deveria acabar.
Acaba quando estamos envoltos nas mais diversas atividades e ficamos com cara de paisagem, sem saber o que fazer. Acaba quando pensamos que ainda é possível andar pra frente, mas as forças nos faltam. Acaba quando olhamos para frente, sabendo o que precisamos fazer, mas a vontade não acompanha a necessidade. Acaba quando as coisas perdem o gosto e o sabor porque o tempero usado não combina com o prato preparado. O gás também pode acabar simplesmente porque é o momento do fim. E quando acaba, em qualquer situação, onde encontrá-lo? Na cozinha, embora trabalhoso, sabemos bem como recarregar o botijão. Mas, quando se trata do gás da vida, nem sempre sabemos onde está a fonte. Penso que, em alguns momentos, é preciso dar gás às coisas que parecem findas; já em outras, talvez seja melhor deixar passar e não buscar a recarga. Aprender a soltar a mão também faz parte do processo. Parafraseando o evangelho, gás novo em botijão velho acaba por rebentar o frasco. Assim, é preciso conhecer bem o que se pretende preparar, a cozinha que se tem, para decidir se é hora de dar um gás novo, ou hora de deixar pra lá.
Para preparar a janta e para tocar a vida, precisamos de gás. Saco vazio não para em pé; atividades vazias não sustentam a alma. E talvez esteja aí a chave de leitura da vida para sabermos se vale a pena dar gás novo à vida velha. Ainda que o gás tenha acabado, se há conteúdo, se não é vazio, talvez valha a pena dar gás. Agora, se ficou vazio, não sobrou mais nada além da carcaça, que não aguenta mais receber gás novo, talvez seja a hora de aposentar o frasco. E como é difícil ter essa percepção. Muitas vezes, a nossa visão sobre a própria vida fica complemente obnubilada e fazemos leituras míopes da realidade. Acabamos por dar gás ao que não necessita e abandonamos aquilo que ainda não se perdeu, apenas precisa de uma recarga. Gastamos tempo e esforço em coisas que são apenas enfeites, acessórias e nos esquecemos do que dá sustância e, no fim, o caldo fica ralo, ou nem mesmo fica pronto, porque o gás acabou antes da hora. Aí o que resta é fome e confusão.
Assim, se a vida precisa continuar, se é preciso preparar um novo alimento, há de se buscar gás em algum lugar. Caso contrário, a vida não anda, a comida não vai ao prato e a fraqueza vem. Se enfraquece o corpo, se enfraquece a alma e a motivação vai embora, não restando nem mesmo aquele último impulso que nos permite realizar as coisas apenas pelo senso de responsabilidade e comprometimento. Refeições abandonadas no meio do processo de cozimento nunca cumprem a sua missão, mas, às vezes, é melhor não comê-las, pois pode-se sofrer depois com uma indigestão. No fim, o gás sempre acaba e nos resta averiguar se ainda dá pra recarregar ou se já não há mais condições. Já que a vida não para, que nunca falte o discernimento necessário para perceber que o gás está acabando e saber o melhor lugar onde encontrá-lo.