Sua mãe pintou comigo
(Dininho 100 anos)
Uma semana depois do falecimento de minha mãe, no já longínquo 2010, chego em Pitangui vindo de Maceió, depois de uns dias de praia. Naquele tempo, podia-se entrar na nossa casa a qualquer momento, "a cadeira atrás da porta, era a única proteção" (trecho da música "Baco Lelê", que fiz com o Reinaldo "Rohr" Pereira.) Entrando na cozinha, papai varria meio sem jeito e, ao me ver, se apoiou na vassoura, esqueceu o serviço e disparou:
- Sua mãe pintou comigo.
A expressão quer dizer que alguém foi maldoso, deliberadamente, com outra pessoa. No caso, mamãe, que morreu sem pedir licença. Naquele momento, entendi que ele estava totalmente desamparado, era uma criança sem ela. O ato de varrer a casa era uma forma de prolongar a permanência dela. Aquele ser humano necessitava de muito Amor e atenção.
Passei uns dias com ele, dando colo e, depois, viajei para continuar a vida. Ultimamente, já não corro para sepultamentos. Ao saber de um falecimento, troco o chip, já penso nas pessoas em outra esfera, inalcançáveis. Me apresso, sim, se minha presença serve aos vivos. Pobrezinho do meu pai, a companheira de tantos anos tinha partido!
Há alguns dias, pensando em escrever sobre aquilo, entendi que mamãe também tinha pintado comigo. Aí pela metade dos anos 1950, estava com ela na fila de um açougue. Muita gente esperava a chegada da carne, que vinha de carroça e trazia o boi quase inteiro, os músculos ainda em espasmos. Na fila, cheia de gente conhecida, minha mãe apontou para o alpendre da casa do professor Morato, do outro lado da rua, cinquenta metros acima. Havia umas moças lá, e ela disse para todo mundo ouvir:
- Olha a fulana, é namorada do Ilho (assim que me chamava).
Não pude aceitar aquela traição, era um segredo nosso. Só ela sabia que a minha namorada era a loura de olhos azuis naquele alpendre. Era moça feita, eu tinha uns cinco ou seis, ela já devia estar estudando na Escola Normal. Chorei, gritei, esperneei, todos riam de mim. E todos se esqueceram que estavam ali para comprar carne, não para zombar do meu sentimento.
Não pensei nisso na hora que meu pai encostou a vassoura, olhou-me fixamente e disse aquilo. Hoje sei que mamãe, que tinha os mesmos olhos azuis da "namorada", era reincidente: também tinha pintado comigo.