Nunca vi minha mãe desarrumada
“Nunca vi minha mãe desarrumada”
Das muitas lembranças que meus colegas de infância carregam, uma delas é da minha mãe buscando-me de carro no colégio. A descrição é farta. Uma senhora elegante. De coque. Cabelos alinhados com laquê. Saia e blusa, ocasionalmente um tailler. Dior, claro, diria ela. O perfume generoso, mas sem ser invasivo. Channel 5. Salto alto anabela. Meias finas. Saia na medida certa. Descia do TL azul clarinho de quatro portas e nunca tinha pressa. Não caminhava. Perpassava. Flutuava entre as pessoas. Segura, tranqüila. Dava bom dia ao picolezeiro, o Baiano, da mesma maneira que cumprimentava a Irmã Colomba. Indistintamente tratava a todos igual. Só eu que não.
- Como fostes, príncipe dos príncipes?
- Bem, mãe. E a senhora?
-Sem problemas. A contadoria é muito boa, meus colegas são ótimos. A tia Rosinha mandou-te um abraço. Eu trouxe um presente.
Abria a bolsa e de dentro saía sempre algo criativo e diferente. Todos os dias. Durante anos ganhei presentes. Meu irmão também. Um dos que lembro era uma carrapeta. Antes de conhecer o pião, joguei muita carrapeta. Um estalar de dedos e ela girava, girava e girava. Mamãe nessas horas colocava música e dançava lentamente. Valsa. Strauss. Naquela vitrola Garrard, agulha Shure. Que coisa maviosa!
Meu pai a enlaçava por trás e ela deitava lentamente a sua cabeça no colo dele. Ele era muito mais alto do que ela. Mas o casal se encaixava como nenhum outro que eu conhecia.
Trabalhavam muito, ambos. Eu não compreendia como o café sempre estava pronto quando eu acordava. Nunca faltou um pão, leite, presunto, fruta, biscoitos, manteiga, mel na nossa mesa. Sempre achei os hotéis fracos em matéria de café da manhã. Nos vinte e cinco anos que morei com meus pais, jamais a mesa deixou de estar posta e farta.
E devido sempre escutar dos meus amigos que minha mãe era chique e coisa e tal. Eu comecei a tentar surpreendê-la desarrumada. Ah, que tarefa inglória! Na minha agitada adolescência, utilizei de muitos subterfúgios. Uma vez liguei do vizinho dizendo que o carro tinha capotado e que apesar de estarmos todos bem, só voltaríamos da Pousada do Rio Quente no outro dia de manhã.
- Dim-dom!
- Oi, mãe.
- Filho?
- Brincadeirinha.
Lá estava ela impecável como sempre. Apesar de ter recebido um telefonema cheio de estardalhaço, típico da minha personalidade teatral.
Nas madrugadas, chegava o mais silencioso possível. Nada. Ela levantava, servia-me um lanche e dava um beijo macio e quente. Como seus chocolates. Eu não sabia de onde ela vinha, parecia estar sentada na sala, oculta por alguma sombra. Se chovesse, tinha uma toalha felpuda. Se eu estivesse muito sujo, mesmo no escuro, ela já ligava o chuveiro.
Num lance desesperado, numa tarde de domingo, após o almoço familiar, antes de irmos ao cinema, entrei no seu quarto de supetão. Ela estava em pé ajeitando sua combinação. É... minha mãe usava combinação. E anágua. Sua coleção de jóias tinha um espaço reservado para os colares de pérolas e para os camafeus. Coisa delicada. Como ela. Pequena e forte. Inteligente e sutil.
Passou-se o tempo e eu desisti. Meu pai veio a ter um derrame e ficou com a metade do corpo paralisado. Ela dele tratou durante dois anos. Homem grande, pesado, difícil de trocar, de se arrumar, de tudo. Exigente. E agora aprisionado numa cama, prendeu-a junto a ele também. E ela saía da linha? Mas que nada! Cantando sempre baixinho as cantigas de roda que ouvi desde menino num disco arranhado do Villa Lobos, juntamente na minha predileta “se essa rua, se essa rua fosse minha...”, ela estoicamente dele cuidava. E o cabelo não saía do lugar, as peças de roupa sempre novas. O eterno Channel também preenchia os ares do apartamento.
Então um dia ela não falou coisa com coisa. Minha mãe delirando era algo grave. Exames daqui exames dali e uma internação. Câncer na medula óssea. Só assim vimos que ela mancava. De todos escondia a dor e absolutamente em momento algum se queixou. Quimioterapia. O belíssimo cabelo caiu. A base do nariz também. As sobrancelhas tão finas e delineadas se foram. Bem cedo um lápis amigo as desenhava novamente.
Meu irmão, o melhor homem que já conheci na minha vida inteira, dela cuidou. Compras, passeios, almoços, jantares,gracinhas, viagens ao adorado Maranhão. Comidinhas. De tudo ele fez. Até trocá-la, até vesti-la, até deixá-la dar ordens na sua casa que já não mais era dela. E eu nas visitas que fazia, a via tão linda e bem cuidada, que não imaginava o fim estar tão próximo.
Internação, uma vela se apagando. Minha vida um reboliço imenso lá fora. E larguei tudo, para passar os últimos dias ao seu lado. Dívida de filho com mãe não se paga nem na eternidade. Mas pode-se tentar. E eu a enchi de poemas, de versos belos, de leituras amenas e contei-lhe uma linda história de amor no seu derradeiro dia.
Ela, então, já na UTI, conversou com todos. Despediu-se. E no meio da noite lá estive. Depois de dar uma aula para uma platéia imensa e imersa nas minhas falas. Sentei-me ao seu lado. Com a voz bem baixinha, sussurrando mesmo, disse-me:
- Filho, meu querido.
Confesso-lhes que quando alguém me chama de “meu querido” eu amoleço. Acho belo.
- Sim, mãezinha. O que a senhora quer?
- Vá à minha bolsa e pegas aquele lenço.
- O Hermès que eu lhe trouxe de Paris? Ele está aí?
- Esse mesmo. Ah, e veja se minhas unhas estão bonitas.
- Mãe, a senhora sempre esteve arrumada. Eu nunca vi a senhora desarrumada...
- Quer saber o porquê?
O mais longo silêncio da minha vida. O instante mais insólito de todos. A curiosidade que o filho perseguiu anos a fio e que – ao que parece- bastaria apenas ter-lhe perguntado.
- Fale o que quiseres.
Eu raramente falo na segunda pessoa, apesar de toda minha infância ter escutado esse modo, além do imperativo nordestino. Mas o momento exigia e naturalmente saiu.
- A minha vida inteira, filho, eu tive tudo que quis. Teu pai foi o melhor homem para mim, tu fostes, junto com teu irmão, os filhos de sonhos que uma mãe deseja. E meus colegas também se fizeram amigos e meu trabalho divertiu-me até o fim.
- Mas...
- Então como as coisas foram boas para mim, eu mantive tudo arrumado. Inclusive eu mesma. Compreendestes?
- Mas... e agora, como vai ser sem a tua presença? A senhora está indo, não é?
- Vou-me, meu príncipe.
- E o papai?
- Deixa estar, está tudo arrumado.
- Manda um beijo pra ele, viu?
- Arrume seu rumo.
- Boa noite, mãezinha.
- Amo-te.
- Eu também.
E eu arrumei o vinco da sua blusa, o lenço, desenhei a sobrancelha, coloquei perfume, saí devagarzinho e na minha cabeça a única música dos Beatles que ela gostava e cantarolava - “My Sweet Lord” - tocava o meu rumo. O resto? Depois eu arrumo.
JB Alencastro