Vi meu pai chorar somente duas vezes

“Vi meu pai chorar somente duas vezes”

- Pai, por que você está chorando?

- Meu pai morreu, filho.

- Mas o vovô não tinha mais de noventa e o senhor não está com sessenta e quatro?

- Já não aproveitou muito ele?

- Pai é pai, filho.

- Entendi.

Calei-me diante de tão honesta declaração. Era a primeira vez em minha vida que eu via meu pai chorar. Acreditava piamente que isso não ocorreria nunca. O homem era forte, forte demais. Aplicava injeção na própria coxa. Acordava cinco horas da manhã e ia nadar com o céu escuro. Retornava para tomar café conosco. Levava-nos para a escola. Trabalhou meio período nossa infância inteira, só para ficar conosco. Um herói.

Era uma segunda feira, seis de fevereiro de 1978. Férias. Eu queria sair. Tocava Bee Gees sem parar, eu tinha uma namoradinha. Ficava louco com “How deep is your love”, e quando ela dançava “Zodiacs” da Roberta Kelly? Era lindo de se ver. Fora o filme “Os Embalos de sábado à noite”, que eu sabia a coreografia do Travolta de cor e salteado...

- Pai, hoje eu vou à casa da Aninha.

- Não dá.

- Como não dá?

- Seu avô morreu, fique comigo, quero conversar...

Tentei até enganá-lo colocando uma regravação da Grace Jones, de “La vie em rose”, que ele adorava. Não deu. Aninha entendeu perfeitamente. Mas eu fiquei chateado. E então meu pai chamou-me na varanda. Chovia. Nem dava para ver a lua. Não houve dia na vida do meu pai que ele não soubesse que lua era. Por motivos românticos, por pescarias, por corte de cabelos, por partos, por o que seja. Ele sempre sabia. Ele sabia praticamente tudo.

- Filho?

- Fala, pai.

- Sabia que o vovô Enéas já foi ao inferno e voltou?

- Pai, eu já tenho treze anos...

- O nome dele reflete o grande guerreiro que ele foi.

- Sei, encontrou seu pai, o Anquises... O senhor já me contou.

- Então irei contar-lhe uma que você não conhece.

E aí desfiou horas e horas sobre caçadas, sobre grandes viagens no lombo do burro no interior de Goiás, sobre os cachorros perdigueiros prediletos, sobre as mulas. E cada passagem mais importante, o céu fazia questão de trovejar. No começo eu não percebi. Mas depois de meia hora, vi que existia uma clara associação entre relâmpagos, trovões e os feitos do meu avô. A noite chorou inteira e meu pai também.

Nem fui à aula no dia seguinte. Minha cachorrinha Ritinha, sentada sempre ao meu lado também escutara tudo. Ela estava triste. Os cães sentem o que os donos vivem. Um animal sempre reconhece o outro. E eu, ali, percebi que meu pai não era assim tão poderoso. E calado, também chorei. O bicho presente, derramou discretas lágrimas e uivou. O sol nasceu.

- Aninha.

- Bom dia, Tista.

- Se a gente tiver um filho como ele vai se chamar?

- Mas que conversa. E eu sei lá?

- Dá um nome.

- Clarissa. De Clara. Você gosta de Maria, né?

- Eu queria nome de homem.

- De homem não sei.

O namoro terminou no outro fim-de-semana. E os anos foram se passando, e numa noite dessas de chuva, provavelmente na mesma data, já em 88, quando eu acabara de me formar e estava servindo o exército, acordei.

Uma discreta luz no escritório. Era sábado. Eu chegara a pouco da rua. Estava cansado e com fome. E vi meu pai. Sentado na sua maravilhosa escrivaninha inglesa. Na época eu não sabia diferenciar uma “davenport” de uma “knee hole desk”. Somente tinha ouvido falar que era uma Taylor. Linda peça de mobília. Sinceramente, a mais bonita da minha casa. Mais linda do que os lustres portugueses que minha mãe trouxera do Maranhão ou os castiçais de prata.

Ah, os castiçais. Meu pai acendera uma vela de um deles. O cheiro de queimado deve ter apagado a minha aproximação. Meu pai nos conhecia pelo cheiro, pelo andado. Não me sentiu. Eu o vi debruçado. Riscava uma pequena caderneta de endereços. Vermelha. Na profusão de papéis, canetas-tinteiro, fotos antigas e um pequeno rádio, ele chorava.

Dessa vez não era como há dez anos atrás. Era um choro contido. Uma coisa amarrada. Como a cilha num cavalo xucro. Aperto. Doloroso aperto. Aproximei-me até chegar tão perto que podia ver a tinta de sua velha Parker borrando o começo dos nomes e riscando num gesto único, como quem faz um ideograma, o endereço e telefone. Eram seus amigos. Todos, exceto dois, já se foram.

- O que foi, pai?

- Nada.

- O senhor está chorando.

- Só restei eu, o João Geraldo e o...

- Mas o senhor tem a mim. Pode conversar o que quiser. Desde quando temos segredos?

- Não é a mesma coisa.

- Como não, pai? Não somos amigões? Confidentes? Sei tudo de sua vida e o senhor da minha...

- Filho, apesar de a alma ser tão parecida, não temos a mesma idade e nem as mesmas lembranças. Cinquenta anos nos separam... Certas coisas só têm sabor quando conversamos com quem é da mesma época...

- Entendi.

Abracei meu pai. E choramos. Devagar. Como dois cavalos que chegam cansados de longa jornada debaixo de tempestade. Lá fora ainda chovia, mas sem sons e luzes. Só chovia.

Na noite passada, acordei para escrever umas coisas de amor. E outras de perdas. E lembrei-me do meu pai. Nadei pela primeira vez em trinta dias, depois do meu acidente. Meu filho fez treze anos três dias atrás. Ele nadou cinco mil metros no dia do seu aniversário. Foi a primeira vez que ele me viu chorar. Eu estava na mesma escrivaninha, claro. Ao fundo, toca “My Way”...

- Pai, eu não sabia que o senhor chorava.

- Acontece.

- Mas nem quando o senhor arrebentou o braço o senhor não falou nada.

- É diferente.

- E o que foi?

- Nada não.

- Fala paizinho.

- Saudades, filho. Do que já passou, do que vivo e do que virá.

Confesso-lhes que muito choro. Mas eles não vêm. E espero que não se passem dez anos ou mais, que eu não fique só, sem amigos, para meu filho ver-me chorar novamente. Só um pai nadador, sabe a verdadeiro significado de afogar as mágoas e lavar a alma. Boa noite de chuva.

JB Alencastro

JB Alencastro
Enviado por JB Alencastro em 18/01/2008
Código do texto: T822401
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