O tempo do antes
Só os absurdos enriquecem a poesia.
(Manoel de Barros)
Já está dito, portanto, basta repetir ou relembrar, como queiram: a poesia nasce do espanto – é Ferreira Gullar. Permito-me dizer que a poesia referida por Gullar não se reduz àquela feita de versos e rimas apenas. Creio que a assertiva dele abarca toda experiência poética que a vida, na sua beleza e na sua feiura, permite aos olhos, ao intelecto e à alma. Creio, igualmente, que o espanto a que se refere está para além do simples susto ou surpresa, mas se associa a um maravilhar-se diante do belo, a um horrorizar-se diante do feio, a uma náusea diante do nojento, a um calar-se diante do mistério, a um mergulho diante dum convite... O nascimento da poesia, financiado pelo espanto, torna-se destarte incontrolável, possui vida própria e imprevisibilidade constante. Pode acontecer a qualquer momento como pode levar muito tempo para.
Todo este prévio roteiro teve por objetivo chegar a isto: o tempo do antes. Quando ouvi, de repente, nas entrelinhas de sua fala o tempo do antes, deu-se o espanto, nasceu a poesia. E a frase era ainda mais profunda, veio acompanhada de um complemento: em tudo existe o tempo do antes. A partir daí o pensamento começou a acelerar e passou a identificar uma infinidade de tempos propedêuticos. E o espanto foi ganhando corpo, vida, sentido, forma, cores, cheiros, textura, linhas...
Se o Eclesiastes diz que há um momento para tudo e um tempo para todo o propósito debaixo do céu (Ecl 3,1), esqueceu de observar que há também este misterioso tempo do antes. Antes do nascimento, o tempo da gestação. Antes da resposta, o tempo da dúvida, do discernimento. Antes da consequência, o tempo da responsabilidade. Antes da saudade, o tempo da companhia. E por aí afora... Geralmente haverá um tempo antes. Antes, o tempo da descoberta. Antes, o tempo da maturidade. Antes, o tempo da infância, do ócio. Antes, o tempo saúde. Antes, o tempo do sorriso. Antes, o tempo ao lado. Antes, o tempo desperdiçado. Antes, um tempo permitido por Deus...
Liturgicamente, estamos no Tempo do Advento. Porque não o chamar poeticamente de o tempo do antes! E como é necessário à fé este tempo prenhe de sinais e provocações. Como é propício ao Natal o tempo do antes. O espanto de Maria antes do sim. A intenção fugidia de José antes de aceitar. O longo peregrinar de ambos antes da manjedoura. A noite estrelada antes do encontro. A conversa com Herodes antes de saudarem o verdadeiro Rei. O Antigo antes do Novo.
Que pena que hoje outros antes se antepõe àquele que realmente deveria importar. O tempo infértil das redes sociais preferido ao tempo fecundo da oração. O tempo desesperado e apressado das compras dos presentes substituindo o tempo impagável da presença amorosa. O tempo da magia ao invés do tempo da graça. O tempo do Papai Noel meses antes e o tempo do Menino Deus quase esquecido, reduzido a nada.
O tempo do antes sem o verdadeiro antes será, depois, um tempo vazio. Um embrulho sem presente, nem presença. Despertemos. Ainda há tempo, antes!