A crônica mora ali na esquina


Reviso a tradução de uma bela tese sobre o surrealismo e o mito da escrita automática. Ainda hoje muitos teóricos da literatura aceitam a idéia desta última por puro fastio, ingenuidade autoconsentida, ou comodidade didática, como preferimos dizer em sala de aula.

Confesso que li menos do que devia os surrealistas europeus, mas a todo momento, quando fazia a Aliança Francesa, topava com André Breton nesta ou naquela frase dos nossos livros-texto, sonhando acordado (ele, não eu). De todas, a única que posso transcrever sem o socorro de velhas anotações curiosamente traduz com fidelidade minha atitude literária para com a crônica. De fato, diz não sei onde o grande poeta: "A aventura mora na esquina."

Que podem ser todas as esquinas do mundo ou da alma, e mais da alma, não tenham dúvida, segundo as referências sentimentais de cada um de nós. Ou mesmo, puxando a sardinha para este lado, o meu próprio Galho de Arruda como prolongamento das esquinas do Boulevard dos Tamarindos, em Marechal Hermes, onde fiz minha formação buissonnière. Além dessa escola da vida, se me permitem, tudo o mais é acréscimo livresco, com antenas meio enferrujadas para o cotidiano no planeta, otimismo e precaução, e uma disponibilidade incurável para acreditar nas pessoas, com a saudável exceção das que estão no poder.

Mas em tudo o que escrevo ainda observo da esquina o pequeno drama diário dos meus iguais, sempre igual onde quer que se esteja. Ir mais longe para expressar o que percebemos do dia-a-dia é canseira inútil. Nessas coisas fico com o Zaratustra nietzschiano, para quem "o centro está em toda parte".

Tem razão Breton. A crônica mora mesmo ali na esquina.


[18.1.2008]