Crônicas de velho - festas de fim de ano, entre o sagrado e o profano
Posso afirmar que ao longo de minha vida as festas de fim de ano, isto é, o Natal e o ano novo sempre foram bem vindas e, em geral, bastante festejadas. Tirando a proximidade existente entre as datas destas festas, praticamente não havia quase nada em comum. Enquanto a primeira (o Natal) remetia necessariamente á família e momentos de oração, a segunda (o ano novo) estava mais para a farra entre amigos, ou mesmo uma oportunidade de encontrar alguém e viver algo sem compromisso.
Éramos católicos e a frequencia á missa de domingo fazia parte dos hábitos familiares. Entretanto, meus pais não participavam do dia-a-dia da igreja local e, curiosamente, eram os filhos que viviam com mais intensidade esse pertencimento religioso. Eu fui coroinha e, até cheguei a quebrar o sino da igreja. Me recordo que fiquei bem assustado e, felizmente e para o meu alívio, descobriu-se que o sino tinha um defeito de fabricação e, ele foi devolvido restaurado à igreja e sem ônus.
Juntamente comigo, mas em grupos diferentes e até mesmo em paróquias diferentes, duas irmãs participavam de Grupo de jovens na Pastoral da Juventude. O final de semana era movimentado, com muitas atividades e momentos de oração (missas, encontros, retiro e outras cerimônias). De certo modo, foi por tudo isso, que também chegou em nossa casa a novena do Natal e com ela a reunião da família e dos vizinhos. A preparação para o Natal e a noite de Natal fazem parte de memórias felizes.
É claro que a ceia natalina e os presentes ganhos na ocasião, refletiam nossa condição socioeconômica. Da relativa pobreza lentamente fomos ‘migrando’ para uma situação de classe média baixa. Não havia ‘perú’ ou mesmo ‘castanhas’, mas havia fartura nos comes e bebes. Enquanto aguardávamos a meia-noite fazíamos orações e, às vezes a família ia a missa do galo ou assistia a mesma pela televisão.
Celebrar em família, reunir parentes e amigos sempre fez parte de nossas ‘tradições’ e isso tem sido uma constante. No passar do tempo a família foi mudando, bem como o grupo que se reunia para celebrar. Em alguns anos a celebração fazia memória de nossas perdas (os pais, uma irmã, primos, tios e tias e até mesmo amigos), mas também das ‘vitórias’ conquistadas a partir de muitas lutas: aprovação em concursos, situações profissionais e escolares positivas, casamentos, nascimentos etc. Enfim, o natal é, talvez, a experiência do sagrado que mais marcou e segue influenciando a vida familiar.
O que dizer do ano novo?
É sem dúvida uma data significativa e bastante festejada, mas a ‘simbólica’ envolvida nesta festa é de outra ordem, de um tipo diferente do sagrado. Se a família puder ou desejar reunir-se vai fazê-lo, mas de certo modo, as pessoas estão ‘liberadas’ para viverem essa noite de uma maneira mais ‘profana’. Nesta celebração é importante viver o inicio do ano que começa acordado, e de preferência se divertindo em boa companhia e fazendo bons propósitos. Nada muito sério, pois, boa parte das ‘boas intenções’ ficaram esquecidas na ressaca do dia seguinte.
Não era incomum que os clubes da cidade (o CIT, o Primavera e o Clube dos 200) promovessem bailes e outros eventos. Era a disponibilidade financeira que estabelecia os limites do que poderia ser feito nesta noite, mas isso nunca impediu a reunião entre amigos, colegas e quem mais pudesse se juntar ao grupo.
Enquanto que no natal as músicas praticamente não mudavam: ‘bate o sino pequenino’, ‘noite feliz’, ‘glória a Deus nas alturas’, ‘da cepa brotou a rama’... no ano novo havia diversidade sonora e a ‘trilha musical’ estava diretamente relacionada ao grupo que estivesse celebrando. Assim, relembro uma ocasião de muito samba (vem daí o fato de gostar de Martinho da Vila), em outra ocasião o ritmo era a ‘discoteca’; mas também fazem parte de minhas memórias ano novo com muita MPB e sertanejo.
Um dado curioso, pelo menos para mim, é o fato de que realmente as férias começavam depois destas festividades. Mesmo quando eu usufruía do recesso de fim de ano – os dias que vão da véspera do natal até o ano novo – pairava no ar o peso do ano trabalhado e o corre-corre habitual do dia-a-dia.
Sagrado e profano estão presentes em todos os dias de nossa vida, bem como outras dualidades, tais como viver a devoção e/ou as obrigações; o que importa é viver em cada momento, de maneira integral os vínculos, as relações que fizeram de nós o que somos e o que ainda poderemos nos tornar. Aproveite, intensamente, as festas que se aproximam e construa suas memórias de bem viver.