A noite nos acusa.

Era noite. O tipo de noite escura e fria que faz o silêncio parecer ainda maior. O céu estava nublado, meio fechado, como se quisesse cair sobre a cidade a qualquer momento. Eu estava na Avenida Santos Dumont, encostado em uma parada de ônibus, com a mochila pesada nas costas e a Elly do meu lado. Minha melhor amiga. Nós dois ali, falando sobre nada e tudo ao mesmo tempo, como sempre acontece quando a gente tem tempo pra perder.

— Não sei o que a gente tá fazendo aqui — comentei, meio sem pensar.

Elly sorriu, aquele sorriso rápido que ela dava quando estava prestes a me contrariar.

— Eu sei. Eu preciso pegar uma papelada ali — ela apontou com o queixo pro prédio enorme do outro lado da rua. — É importante, sério. Não dá pra deixar pra depois.

Eu olhei pra cima, analisando o prédio. Alto, antigo, com uma aparência meio estranha na escuridão. Parecia vazio, mas, sei lá, naquela noite, tudo parecia meio errado.

— Tá bom, vai logo, mas desce rápido — falei, enquanto sentava no banco da parada.

Ela assentiu e atravessou a avenida, sumindo pela porta do prédio. A luz na entrada estava piscando, o que não ajudava em nada. Fiquei ali, sozinho, mexendo no celular. O vento batia mais gelado e eu nem sabia explicar, mas comecei a ficar inquieto. O tipo de sensação que você não consegue ignorar, sabe? Olhei de novo pro prédio, pra ver se Elly aparecia. Nada.

Minutos depois, começaram a surgir umas pessoas. Uma, duas, três. Não sei de onde vieram, só sei que, quando percebi, tinha uma pequena multidão se reunindo na entrada do prédio. Cochichos. Palavras soltas que o vento trouxe até mim.

— Ela tá lá em cima… — ouvi alguém dizer. — Não pode sair impune.

Na hora, franzi o cenho. O que estavam falando? Impune de quê? Meu coração acelerou e eu fiz a única coisa que pensei: mandei mensagem pra Elly.

“Sai daí agora. Tem gente aqui fora, tá estranho.”

Ela visualizou, mas respondeu na maior calma do mundo:

“Relaxa, já tô quase terminando.”

“Relaxa”. Como se o clima pesado e as vozes não estivessem me dizendo que tinha alguma coisa muito errada. As pessoas começaram a se mover, a falar mais alto. Elas estavam falando dela. Falando que “a moça” precisava pagar, que não podia descer. Um cara puxou outro pelo braço e gritou:

— Queimem! Se ela não vai descer, a gente sobe o fogo!

A cena foi tão rápida que demorou um segundo pra eu entender o que estava acontecendo. Um grupo começou a atear fogo nas portas, na parte de baixo do prédio. Minhas mãos suaram. Eu mandei outra mensagem.

“Elly, desce agora! Eles tão botando fogo!”

— Você conhece a moça que entrou ali? — a voz grossa me arrancou dos meus pensamentos.

Virei a cabeça devagar e encontrei um homem parado ao meu lado. A cara dele era dura, sem expressão, mas os olhos me analisavam com tanta certeza que senti como se ele já soubesse. Tentei não responder, mas o celular vibrou na minha mão, me entregando.

— Conhece, né? — ele disse. — Se ela fez, você fez junto.

— Ela não fez nada.

As palavras saíram de repente, sem eu conseguir controlar. Ele riu. Baixo, mas riu. E a multidão começou a se mover ainda mais. Eu não pensei em mais nada além de Elly. Ela precisava sair dali.

Foi aí que vi uma silhueta correndo do outro lado da avenida. Era ela. Eu me levantei num pulo e atravessei, desviando das pessoas que olhavam com fúria pra porta em chamas. Elly parou ao meu lado, ofegante, as mãos segurando as alças da mochila como se a vida dependesse daquilo.

— Bora, pega tuas coisas — ela disse, olhando pra trás.

Eu puxei minha mochila do chão. Era como se tudo tivesse ficado em silêncio por um segundo, só o fogo estalando no fundo e o vento trazendo o cheiro de fumaça. Não dava tempo de falar nada.

— A gente tem que sair daqui — falei, e ela só concordou com a cabeça.

Então, a gente correu. Mochilas pesadas nas costas, ar gelado queimando o rosto e a sensação de que o mundo tinha virado contra a gente. Não olhamos pra trás. Só seguimos, como se aquela fosse a única coisa a se fazer. E talvez fosse mesmo.

Naquela noite, naquela avenida, parecia que todo mundo tinha um motivo pra acusar, pra queimar, pra culpar. E tudo o que tínhamos era o silêncio, o frio e a certeza de que a gente só precisava sair dali. Porque a verdade? A verdade nem sempre importa quando as pessoas já decidiram o que querem acreditar.