A senhora e sua garrafa
Intento escrever constantemente as crônicas das ruas de Santa Cecília, no centro da cidade de São Paulo, porém, são tantas as coisas que vejo e que se passam que torna até difícil as escolhas.
No entanto, alguns eventos saltam a todos os critérios de escolha e se impõem.
Pois hoje houve um desses acontecimentos.
Na rua Canuto do Val, uma senhora vestida de preto, não estava com andrajos. Nem sei se ela é moradora de rua. Talvez seja alguém tão desconstruída e magoada da vida que protagonizou a cena que vi.
O escrevinhador é um bisbilhoteiro, presta atenção nas pessoas, nas coisas, nos acontecimentos e não muito raro procura pescar a vida de cada um. Isso não é maldade do escrevinhante, não é fofocaria nem abelhice, é somente por uma vontade de apreender o humano, as dores e as manifestações que vão para a superfície da vida social, esse aparecer do iceberg de cada um dos atores em algum palco.
Voltemos à senhora. Estava com uma mochila preta nas costas, se era moradora de rua estava, provavelmente, há pouco tempo sem residência. Seu cabelo era bem arrumado e sua mochila ainda um pouco nova. Para a Santa Cecília acorre muitos que ficaram sem abrigo recentemente.
Só após prestar mais atenção na senhora, ela por volta de seus quarenta anos, vi uma garrafa de bebida alcoólica na sua mão. Não havia percebido que cambaleava. Sorveu um gole da garrafa e cantou chorando, com um sorriso doído e um choro cantado.
Não preciso dizer que a senhora é negra. É quase redundante dizer que um morador de rua na Santa Cecília, em São Paulo e neste Brasil adentro é negro ou muito mais de cor mais escura, embora haja muitos brancos nessa situação.
Pois sim, passou próximo a esta senhora um senhor com uma sacola de supermercado com algumas compras. Não sei o que ela disse para ele, porém, não importam suas palavras, pois a indiferença é a mais comum das atitudes nessas ocasiões. E ela restou assim vendo passar a pessoa que a tratava como a árvore próxima deles.
Pensei comigo, na minha dor. Pois sim, sou negro também e se não posso ajudar meus irmãos de rua - irmãos por serem gente e por serem da minha etnia e, portanto, por termos uma história de exclusão comum -, se não posso ajudar meus irmãos de rua, sinto literalmente na pele a dor da sua exclusão e sei o que sentem na alma porque, pois muitas vezes, passo pelo que eles passam. Pensei comigo na minha dor ser esse o princípio do samba. Esse canto do sofrimento, esse expressar da dor.
O samba é alegre e triste, é gingado e expressão corporal do axé da vida, se mesmo necessitando de entorpecente para continuar e ir ultrapassando as dores da negação da humanidade, no segundo inexorável, no minuto cruel, na hora entristecida e no dia sem sol da vida. O samba entorpece, alegra e faz esquecer na expressão do sofrimento e da dança as dores de sempre. Há outras músicas de raízes negras que desempenham funções semelhantes como o soul - a alma profunda e axética – e o próprio chorinho, este um choro musicado e cantado, pequeno, consolador.
Nada disso, resolve, senhora, sua dor e nem tampouco a minha. Tenho negações lançadas a mim todo o tempo e as que andam comigo por ser negro. Por isso, me junto à sua força de vida. A senhora não morreu, vive como pode e resiste com esse grito de humanidade. O que para muitos tenha sido uma má expressão, embora, com as dores monstruosas embutidas, para mim é um grito de vida. Não sei, senhora, se este grito será ouvido, provavelmente não será jamais. Não há muita empatia nesse mundo por nós negros. As empatias que há carecem de efetividade constantemente, ficam no meio do caminho e o que é pior, no remorso de alguns somente por perceberem momentaneamente seus privilégios.
Por enquanto, senhora, só penso como um filósofo, se o problema não se resolveu é preciso continuar falando dele, não se pode calar. Resta sempre a seguinte pergunta: como será solucionado e quando? Daqui a duzentos anos? Ou nunca? Inverto a palavra do filósofo e digo que daquilo que não se pode calar não se pode deixar de falar. É muito triste terminar essa crônica com aporias porque os problemas aqui tratados são de urgente solução, urgentíssima, eu diria.
Rodison Roberto Santos
São Paulo, 01 de novembro de 2023