A senhora negra idosa

Caminhava pela rua Martim Francisco na Santa Cecília, no centro da cidade de São Paulo, uma senhora negra idosa. Passos lentíssimos, mas fortes, equilibrando-se o melhor possível, sentindo o chão que pisa. Cabelos alvíssimos como a lã, com uma elegância inconteste, cabeça erguida na sua altivez de dignidade tocante. Agora ela anda devagar, contando os passos, já correu muito, trabalhou muito para manter a vida. Beijar-lhe-ia as mãos que tanto bem fez, que cozinhou, fez carinho, cobriu com cobertas abrigando seus filhos, netos, sobrinhos e agregados. As mãos que limpou, arrumou, abraçou e enxugou lágrimas doridas.

Lá vai a senhora, procura a sombra da rua, para ao falar com alguém, despede-se e volta à beleza de seus passos firmes e sem pressa. É uma rainha da vida, que com certeza não foi tão sem penas e fora recheada com muitas dores. É uma das mulheres mais belas que já vi, é a bisavó, a avó, a mãe, a tia, a irmã e fora a filha, a neta, a sobrinha, talvez a grande companheira de um homem, sua força, sua doçura, seu aconchego, seu amor, quem sabe ainda seja.

Ela persistiu em viver e vive; a dimensão de sua figura sobre os meus olhos, da janela, é gigante. Não é só a rainha da Inglaterra que merece deferência e genuflexão, essa senhora merece a reverência. Quantas compreensões teve com as pessoas e quanta incompreensão sofreu! Quanta sabedoria para atravessar as décadas, quantos dias aflitos, quantas noites mal dormidas e a força da vida reaparecia pela manhã ao enfrentar os desafios, vencer os obstáculos, resolver os problemas, oferecer soluções.

Nela vi minhas ancestrais. Essas originárias das vidas, essas forças dos olhares, essas mãos construtoras. Vão tecendo sabedorias como tecem roupas, costuram, fiam, consertam, tricotam, crocheiam, adoçam a iguaria e o dia, com suas cantarolices melodiosas, ninam para o dormir, fazem o café saboroso para depois do levantar, tecem o dia impondo a ele a todos ao redor a esperança e a doçura do viver.

São rainhas do afago e afeto. Ensinam como viver nesse mundo complicado, principalmente para a sua descendência negra. Lá vai a senhora representante dessas tantas que fizeram o carinho na cabeça, puseram no colo, sempre tiveram um acalanto para a dor de uma injustiça ou de inúmeras delas.

Elas sabem que a vida é emaranhada nessa teia desses silêncios, desses pensamentos e desejos e o seu sorriso acolhedor já destampa uma pequena paz, já tão grande, uma pequena esperança, gigante. Quando se vê um sorriso assim tudo se dissipa, a força do axé da vida irrompe mais forte que uma raiz de uma frondosa árvore velhíssima.

Anda então a senhora, a terra onde pisa lhe reverencia e vai cuidar para que quando abrigá-la um dia, quando acolhê-la em seu seio, vai cuidar para que ela seja essa semente fecunda dessas árvores que persistirão prenhes de vida e abrigarão muitos seres, pássaros, animais, gentes, amores e renovações de viver.

Eu a amei a essa senhora na sua passagem fugaz na rua. Ela não sabe do meu amor, do meu olhar, não se apercebeu. Mas não tem importância, a tantos deu amor e o retribuiu, que a mim, um desconhecido, embora de sua cor e etnia, não importa se ela não possa irradiar sua imensidão de bem; involuntária e inconscientemente ela irradia ao mundo sua grandeza.

Vida longa, senhora! Trace seu caminho, procure seu objetivo e vá irradiando seu afloramento ou derramando suas flores pelo mundo. É tronco, é paz, é amor, é canto belo. São a beleza e o amor em pessoa. Vai cantando essa música pelo universo, imortal e altissonante. É a glória das mulheres, dos homens e da humanidade. Todos os chapéus foram retirados com respeitos das muitas cabeças ao vê-la passar embora a senhora não os tenha visto. Não importa, o importante é que a senhora merece e derrama essas bondades e belezas por onde passa!

Rodison Roberto Santos

São Paulo, 11 de abril de 2021

Rodison Roberto Santos
Enviado por Rodison Roberto Santos em 16/12/2024
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