Entre Sem Bater - Conspiração Consumista

Um documentário disse:

"... Buy Now - The Shopping Conspiracy ..." (1)

Este texto, assim como alguns outros, é do tipo "conteúdo estrutural". Em outras palavras, textos que podem surgir na sequência utilizarão deste para explicar alguma coisa sem repetição. Desse modo, como numa trilogia ou sequência, é desnecessário repetir ideias e conceitos. Por outro lado, para os leitores, é como se ao ver um episódio de uma série de TV, seja essencial voltar a episódios anteriores. Este formato de publicação, com toda a certeza, ajuda as pessoas que não gostam de textos longos e podem ir e voltar quando acharem interessante.

CONSPIRAÇÃO CONSUMISTA

Em primeiro lugar, algumas explicações são essenciais, especialmente quando utilizamos o termo conspiração consumista em um texto de conteúdo estrutural. A princípio, utilizo os temas que vou escrever em um laboratório bem peculiar: uma mesa de boteco(*). As opiniões sobre cada tema são diferentes, dependendo do teor alcóolico e do conhecimento de cada interlocutor. Um destes, por exemplo, pode não ter nenhum domínio sobre o assunto, mas o teor alcóolico no cérebro, o torna corajoso. Adicionalmente, constatamos que muitos ao verem um tema novo, são especialistas em pesquisas no Google ou perguntas para Alexa. Assim sendo, meus laboratórios ficam interessantes, o que suscita textos menores dependendo do assunto, como é este caso.

Em conspiração consumista, no primeiro laboratório, observei uma reação que eu não esperava. Um dos interlocutores entendeu que eu falei conspiração comunista. Como as hashtags daquele momento estavam com a palavra golpe, golpista e anticomunista em alta, foi uma explosão. Destaco que minha intenção era apena falar da série, mas algumas ideias que surgiram depois foram bastante interessantes. Desta forma, escrevi o conspiração consumista e, na sequência, uma série de textos com as cinco "lições" do documentário.

E pensar que os luditas(2) de séculos atrás se transformariam nisso que aí está. Perdemos !

O DOCUMENTÁRIO

A conspiração consumista é, em suma, um documentário que expõe os métodos que corporações globais expõem suas marcas. Desse modo, elas cuidam de os clientes (consumidores) comprando. De certa forma, o documentário apresenta, de maneira realista, o impacto desse consumo sem limites na sociedade. A produção apresenta entrevistas com ex-diretores e trabalhadores de empresas como a Google, Unilever, Adidas e Amazon. As entrevistas relatam, sobretudo, como estas empresas manipulam seus consumidores de maneira inequívoca.

O documentário mostra, primordialmente, que as empresas usam estratégias para criar o desejo de adquirir bens desnecessários. Em outras palavras, elas tornam o processo de compra mais rápido, de modo a não deixar tempo para pensar. Além disso, o ciclo de vida dos produtos "diminui" para que o consumidor compre algo "novo" mais rapidamente. 

A produção divide-se em cinco "lições": "Venda mais", "Desperdice mais", "Minta mais", "Esconda mais" e "Controle mais". Com toda a certeza, uma conspiração consumista que consegue angariar seguidores e apoiadores insanos.

O consumismo(3) é a prática de consumir além das necessidades, na maioria dos casos, comprando coisas supérfluas. Esse consumo costuma, enfim, associa-se a sentimentos intensos e nem sempre perceptíveis pelas vítimas. Em tempos de obscurantismo, o desejo de pertencimento, por um lado, e a culpa e frustração, por outro alimentam mentes vazias.

BUY NOW !

O FENÔMENO

"A Conspiração Consumista" apresenta um olhar crítico sobre uma dinâmica que molda comportamentos, escolhas e até mesmo valores sociais. Sob um tom que alguns qualificam como alarmista, o filme expõe depoimentos de ex-executivos e marqueteiros da indústria do consumo. Profissionais que, surpreendentemente, decidiram abandonar o setor por questões éticas e humanitárias. No entanto, independentemente da intenção do documentário, a realidade é que o sistema de consumo de massa venceu. Inquestionavelmente, o sistema é uma verdadeira conspiração consumista que consolidou-se como um dos pilares da vida contemporânea. Assim sendo, combinando estratégias psicológicas e avanços tecnológicos, a conspiração consumista não apenas venceu, é o nosso tecido social.

A PSICOLOGIA DO CONSUMO

A base do consumismo moderno tem uma ligação intrínseca e umbilical com a psicologia e sociologia da atualidade. Desde que o sobrinho de Freud, utilizando-se das ideias do tio sobre a mente humana, durante a Guerra Fria, moldou o consumismo. O ato de consumir vai além de satisfazer necessidades básicas; ele oferece uma sensação de pertencimento, status e a ilusão de felicidade. Marcas e campanhas publicitárias exploram, de forma sistemática, vulnerabilidades emocionais e comparações absurdas. Conceitos como "compre para ser feliz" ou "você merece isso" criam um ciclo infinito de desejo e aquisição.

O neurocientista Antonio Damasio aponta que decisões humanas sofrem influencia definitiva das emoções. Campanhas publicitárias de sucesso sabem disso e utilizam narrativas que evocam sentimentos como nostalgia, aspiração, medo ou inclusão. Produtos deixam de ser apenas objetos para se tornarem extensões da identidade do consumidor. A necessidade de pertencimento social, hipoteticamente fundamental para os seres humanos, vai além de qualquer limite racional. Atualmente, as redes sociais amplificam esse fenômeno ao oferecerem uma vitrine permanente de irracionalidade e ilusões.

Enfim, a "nuvem" é onde os indivíduos comparam suas vidas com os padrões utópicos dos influenciadores e subcelebridades.

O PAPEL DAS COMUNICAÇÕES

A revolução digital acelerou exponencialmente o ciclo do consumo e da irracionalidade humana. Plataformas como Instagram, Tik Tok e Facebook, Kwai e outras transformaram-se em verdadeiros centros de publicidade furtiva. Cada publicação esconde uma estratégia de marketing,  através de influenciadores, que promovem produtos de forma quase imperceptível. Por outro lado, algoritmos personalizam ofertas com base nos interesses e comportamentos de cada usuário na Internet.

A velocidade das comunicações, sem dúvida também contribuiu para reduzir o tempo de reflexão antes de uma compra. A integração de catálogos digitais, como aqueles oferecidos pela Amazon ou Shopee são uma arapuca. A facilidade do "um clique para comprar" eliminou barreiras que, no passado, permitiam um momento de ponderação. A pretensa conveniência é uma das principais razões pelas quais consumidores realizam compras por impulso.

O EGOCENTRISMO

Outro aspecto central do fenômeno consumista é o egocentrismo. Ou seja, através de mensagens que reforçam a importância da realização pessoal acima de outros valores, avança o consumo. Mensagens como "faça isso por você" ou "você merece" reforçam a ideia de que consumir é um ato de autocuidado e, inclusive, de autoafirmação.

Ao mesmo tempo, a cultura da comparação, normal nas redes sociais, promove um ambiente onde pessoas se sentem sob avaliação constante. Seja o carro novo, o smartphone da última geração ou uma experiência gastronômica com requintes. Sinais exteriores de riqueza, sem dúvida, é exibicionismo, e tudo vira moeda pela validação social. Desse modo, cria-se um ciclo de ansiedade e desejo que retroalimenta um sistema econômico, que se beneficia do consumo sem limites.

O PAPEL DO MARKETING

Neste contexto, um dos aspectos mais insidiosos do consumismo é a capacidade de criar necessidades artificiais ou inúteis. O conceito de "obsolescência sob controle", onde produtos têm vida útil com limites, é, por exemplo, cruel e irracional. Assim sendo, força com que os consumidores, mesmo não precisando, comprar novas versões do que já possuem. O caso mais notório são as câmeras fotográficas que estão nos celulares, ou qualquer outra tecnologia destes dispositivos. É provável que a grande maioria dos consumidores não utilizem 80% dos recursos tecnológicos que estão nos aparelhos que compram. Isso não apenas maximiza os lucros das empresas, mas também perpetua um ciclo de desperdício e degradação ambiental.

Este é, em suma, o papel que o marketing desempenha nesse processo de conspiração consumista. Transforma, certamente, desejos em "necessidades" que a maioria das pessoas esquece após uma compra. Ninguém precisa, de fato, de um telefone que também sirva como câmera profissional ou assistente virtual. Contudo, a propaganda faz com que muitos sintam que estão "ficando para trás" sem esses avanços e gadgets. Isso não é coincidência; é o resultado de campanhas com planejamento meticuloso para moldar percepções e comportamentos.

UMA DERROTA IRREVERSÍVEL

Apesar dos movimentos que pregam o minimalismo ou a desaceleração do consumo, a conspiração consumista venceu. O crescimento exponencial do e-commerce e o aumento do uso de crédito digital para aquisições são fortes indicativos. A ascensão de marcas que faturam bilhões explorando as "tendências" de consumo rápido têm métricas perceptíveis. Por isso, o sistema capitalista, de consumo rápido e desnecessário, está mais forte do que nunca e avança sem controle.

Como se não bastasse, o impacto cultural e tecnológico do consumismo é profundo, cruel e abrangente. Mesmo aqueles que se dizem alheios a ele não conseguem escapar completamente das ciladas. A roupa que vestem, o celular que usam ou até mesmo as plataformas onde se mostram contra o consumismo são produtos deste sistema. Temos, por exemplo, as mudanças de plataformas que monetizavam pouco para os usuários (como o Orkut) para aquelas que dominam a vida moderna.

REALIDADE NUA E CRUA

A reflexão sobre o consumo deveria ser essencial, mas a realidade é que questionar o sistema é quase uma sentença de morte. Além das  alternativas não serem viáveis para as gerações "tecnológicas" é um simbolismo utópico, uma distopia, um nada. Em tempos de comunicações rápidas e conexões instantâneas, o tempo para pensar deu lugar ai desejo estéril de agir.

Enfim, no mundo contemporâneo, agir significa consumir alguma coisa, na quase totalidade dos casos. A conspiração consumista venceu porque conseguiu transformar o consumo em um dos maiores pilares da identidade humana. Essa é a vitória definitiva: uma vitória que molda indivíduos, culturas e economias. Perdemos, de forma tão profunda que qualquer reversão parece não apenas improvável, mas impossível.

Palavrinha final: Foda-se o Natal !(4)

"Amanhã tem mais ... 

P. S.

(*)  Um amigo disse certa vez: "... nunca vi boas ideias e amizades verdadeiras nascerem numa leiteria ou fila de padaria ...". Com efeito, numa mesa de boteco é que surgem as melhores ideias e amizades. Confundir conspiração consumista com conspiração comunista só com muito álcool e droga na cabeça, ou muita falta de noção.

(1) "Entre Sem Bater - Conspiração Consumista - O Documentário" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2024/05/16/entre-sem-bater-wendell-berry-o-ludismo-no-seculo-xxi/https://evandrooliveira.pro.br/wp/2024/12/16/entre-sem-bater-conspiracao-consumista-o-documentario/

(2) "Entre Sem Bater - Wendell Berry - Os Luditas"

(3) "Entre Sem Bater - Noam Chomsky - O Consumismo" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2024/01/21/entre-sem-bater-noam-chomsky-o-consumismo/

(4) "Entre Sem Bater - Harlan Ellison - Foda-se o Natal" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2023/12/01/entre-sem-bater-harlan-ellison-foda-se-o-natal/