O senhor Ipkiss

Uma situação desinteressante me ocorreu há pouco. Eram por volta de 6h da manhã, na porta da Coronel, quando saí à porta, com uma incerteza enorme. A essa altura, teria ou não teria o Zé Leiteiro dado as caras?

Senti falta, à ocasião, de uma das figuras mais agradáveis da vizinhança, que sempre, quando diante da hesitação costumeira, me tirava a dúvida. Desde semana passada, que a presença física de meu vizinho já não se faz presente no asfalto, na sombra larga da árvore em frente à minha casa ou na calçada de sua residência oficial. Internaram-no, mas só agora, depois de toda a semana, é que me dei conta de sua ausência. Onde estava todo esse tempo, que não lhe notei a ausência? Por acaso, sou eu um robô? Ou será a semana comercial muito extensa?

Impressionante o estrago que sábados nos fazem. Danificam-nos bastante. Toda uma semana de trabalho e ausência, enquanto isso, o mundo lá fora, no compasso descompasso, e nós sem perceber.

Não sei por que ainda existem. Bom seria viver longe deles. Nós, sempre produtivos, ausentes, sedados, incapazes de notar desaparecimentos. Não sou, contudo, totalmente contra os sábados, essencialmente dias erráticos e procrastinadores. Não sou, igualmente, desses que dizem "Amigos, amigos, vizinhos à parte". Também não sou desses que afirmam convictos: "Vizinhos, melhor tê-los!"

Agradava-me, porém, a presença física do senhor Ipkiss. Excelente vizinho. Animava bastante, principalmente aos fins de semana, a pacata Coronel, que, nos braços do senhor Ipkiss, ganhava colorido, presença, vida. Agora não passa de uma rua como qualquer outra rua, cheia de carros, asfalto, poluição e palidez terrível.

Sem a presença física do senhor Ipkiss, a Coronel perde a patente, e o mais grave, me surgem diversas questões, tais quais: quem poderá me esclarecer a dúvida sobre a vinda ou não do leiteiro? Quem, em alta madrugada, me dará conselhos tão úteis, como aquele que me prescreveu atender crentes de toalha, como modo de dispensá-los de reincidência? Quem ouvirá meus silêncios malfazejos em noite de lua cheia? Quem dirá as horas ao senhor Ipkiss? Quem me dirá as horas?

Internaram meu vizinho, e a Coronel parece que foi junto. Está pálida, fria e silenciosa, sem a presença animada do senhor Ipkiss. Já não me sinto na obrigação moral e cívica de dar bom dia para ninguém. Aliás, relevo, por espirito de comunidade e bom senso. Posso perfeitamente cumprimentá-los e falar sobre meteorologia. Apenas. Depois, cada qual aos seus dissabores, sem nos darmos conta de nossos nomes, rituais, preferências culinárias ou futebolísticas. Aliás, fiz uma estatística, e descobri que 79, 99999999999999% dos nossos vizinhos são bons, quando não sabemos quem são.

Certamente estes números depõem contra mim. Contudo, abro uma exceção para o senhor Ipkiss. Era um excelente vizinho, em que pese seu gosto duvidoso por duvidar. Excelente vizinho conselheiro, que, de madrugada, ficava falando com gato, cachorro ou pássaros, e escutava tudo ao redor. Foi ele quem primeiro viu o início de meu grande feito este ano. Eram 4h da manhã, e saí para completar meus 10km. Ele estava lá, embaixo da árvore hoje órfã, para me dar "bom dia!", e dizer que estava "na reserva", mas de modo poético, sem ressoar quaisquer restas de problemas com álcool, o que ironicamente justificou sua internação.

O senhor Ipkiss, segundo a medicina, tem problemas com álcool. É, sem dúvida, um senhor problema. Mas não creio que sua ausência na Coronel seja um problema menor. Excelente vizinho, em que pese ser um vizinho.

Damião Caetano da Silva
Enviado por Damião Caetano da Silva em 14/12/2024
Reeditado em 15/12/2024
Código do texto: T8218812
Classificação de conteúdo: seguro