O Castelo e a Fazenda

A memória mais antiga que tenho de Borda da Mata é do primeiro dia que pisei nessa terra abençoada por Deus e por sua Padroeira, Nossa Senhora do Carmo. Isso foi em meados do ano de 1988, quando eu vim lá da cidade onde nasci, Barbosa Ferraz, no Paraná, para morar com a minha avó materna aqui no Sul de Minas Gerais.

Naquela época não tinha Terminal Rodoviário na cidade. Os ônibus intermunicipais, das empresas Transul e Gardênia, tinham como ponto central de embarque e desembarque de passageiros a extinta Panificadora Joia. Nosso ônibus veio de Campinas e ao adentrar no estado de Minas já fui notando a exuberância das verdes matas e a imponência das montanhas, além das sinuosas curvas da estrada.

No alto de meus oito anos de idade tudo era incrível, novidade, um mundo novo a descobrir, explorar. E assim comecei a minha aventura como um mineiro adotado por esse estado maravilhoso, que de tão grande e diverso, parece um país. Indescritível caldeirão de culturas, raças, tradições, fé e muita história.

Ao descer do ônibus do Expresso Gardênia e dar meu primeiro passo em terras bordamatenses, tive a certeza que a minha história iria se misturar com a história dessa terra, foi amor à primeira vista e um fato inusitado num primeiro instante. Ocorre que ao sair do ônibus entramos por tabela na Panificadora Joia e aquele aroma inesquecível dos quitutes e da saborosa Rosca Rainha foi a melhor recepção que se poderia ter.

Mas vamos ao fato inusitado. Como a Panificadora Joia ficava na esquina da Praça Nossa Senhora do Carmo, dava para entrar pelas grandes portas de madeira, de duas folhas, azuis, do lado que o ônibus parava e sair pelas portas do outro lado, que dava na Praça da Matriz de Nossa Senhora do Carmo. Quando vi aquele maravilhoso templo, com sua expressiva arquitetura, campanário e uma alta torre, fui logo exclamando: “Vó, eu não sabia que aqui tinha um Castelo bem no centro da cidade”. Não só a minha avó, mas todos que estavam por perto riram demais naquele momento. Foi então que ela me explicou que aquele templo esplendoroso era a Igreja Matriz de Nossa Senhora do Carmo, a Padroeira de Borda da Mata.

Meses depois fui aprender na escola que aquela era a nova Matriz, que foi idealizada por Monsenhor Pedro Cintra, com a benção da pedra fundamental em 1951, pelo então Bispo Diocesano, Dom Otávio Chagas de Miranda (patrono de minha cadeira na Academia Pouso-alegrense de Letras) e com a sua sagração realizada em julho de 1958, por um filho dileto de Borda da Mata, Dom João Rezende Costa, Arcebispo Metropolitano de Belo Horizonte.

Depois de passar pela Igreja Matriz, atual Basília de Nossa Senhora do Carmo, conhecendo seu belíssimo interior, com suas colunas e capitéis, a Imagem da Virgem do Carmo no Altar-Mor e a Capela do Santíssimo, seguimos nosso caminho, a pé, pelas arborizadas Praça Monsenhor Pedro Cintra e Avenida Alvarina Pereira Cintra, até a penúltima casa na saída para o bairro Contendas.

Naquela época, ali atrás da Basílica, onde fica o parquinho infantil, existia um prédio onde funcionava a Biblioteca Municipal Professora Carolina Oriolo. Na esquina com a rua Arthur Bernardes, ficava a tradicional Casa Tem Tem, com seu lema: “Tem o que as outras não tem!” Anos mais tarde esse estabelecimento foi acometido por um incêndio e mudou para a Avenida Alvarina Pereira Cintra. Foi lá, que aos treze anos de idade, tive meu primeiro emprego contratado pelo proprietário José Floriano Primo, o Zé da Loteca.

Mas voltando ao meu primeiro dia de Borda da Mata, continuamos nossa caminhada pela avenida passando em frente ao Casarão da Família de Demercindo da Costa Brandão, Selaria do Messias Seleiro, Casarão da Maria Antônia, Armazém do Demercindo (atual Casa do Compadre), Casa Santa Izabel, Máquina de Arroz do Agnelo Machado, Cadeia Pública, Delegacia de Polícia Civil, Residência do Gerson Machado, da Dona Olímpia, da Sobreira e, enfim, chegamos ao conjunto de casas do irmãos Couto. Amilton do Couto (Mirto), Vicente do Couto e João Borges Filho (Zico do Couto).

Nosso objetivo estava alcançado, chegamos à casa do tio Zico do Couto, casado com a minha tia-avó Zelma, irmã da minha avó Ilda. Para cima da casa deles tinha somente a casa da Bela, esposa do Alcino, e na sequência a estrada que vai para o Santo Cruzeiro e para o bairro Contendas. Ali ficaríamos hospedados pois a casa da minha avó ainda estava em construção, sendo uma das primeiras do Loteamento do Didi Brandão, que se tornaria o bairro Nova Borda.

Aí que aconteceu outro fato inusitado, a fazenda. A casa do tio Zico e tia Zelma ficava na esquina e tinha um alpendre com vista privilegiada para quase toda a extensão da Avenida Alvarina Pereira Cintra. Ao final da avenida, no alto de uma pequena colina tinha um muro extenso e que ia longe, com dois portões, um maior, bem ao centro, e outro mais pequena, bem no lugar onde fica hoje a Torre da Vivo. Na época não tinha nem torre e nem o prédio onde funciona atualmente a Delegacia de Polícia Civil, e que também já foi Velório Municipal e Policlínica.

Quando olhei para o alto da colina, vi aquela extensão toda de muro e os portões, julguei se tratar de uma fazenda. Fui radiante contar a descoberta para a minha vó, tios e primos. Falei que eu nunca tinha visto uma fazenda dentro da cidade, queria ir lá ver os bezerros, cabritos, galinhas e outros bichos. Novamente foi só riso de todos e a revelação: ali era o Cemitério Municipal. O motivo do meu equívoco é que no Paraná o Cemitério ficava distante da cidade e eu nunca tinha visto desse modo, integrado ao perímetro urbano.

O Cemitério Municipal foi ampliado várias vezes ao longo dos anos, ficou imenso e lá repousam os restos mortais de meu avô Danga, assim como de diversos familiares e amigos. Na época em que achei que o Cemitério era uma fazenda, o local tinha os dois portões já mencionados anteriormente. Um portão maior ao centro, era por onde entravava os sepultamos de falecidos católicos. No portão menor, que existia onde fica hoje a torre de celular da operadora Vivo, era onde entravam os sepultamentos dos evangélicos ou protestantes como era dito na época. Uma triste curiosidade que denota o preconceito de outras épocas: até início da década de 1980 os sepultamentos que seguiam para o Cemitério Municipal quando eram de católicos subiam pelo lado direito da Avenida Alvarina Pereira Cintra e de protestantes iam pelo lado esquerdo, na contramão. Quando aqui cheguei, no final dos anos 80, pude ser testemunha ainda da existia de resquícios de arame farpado e mourões de uma cerca que separava o Cemitério entre as religiões. Sejamos gratos pelo ecumenismo que existe atualmente.

Essas duas memórias inesquecíveis de minha infância marcam o início de minha vida em Borda da Mata. Quantos momentos passei até hoje nessa cidade incrível. Quantas amizades construí ao longo de décadas. Aqui cresci enquanto profissional e escritor. Formei minha família abençoada por Deus e pela amada padroeira Nossa Senhora do Carmo. O Castelo e a Fazenda de Borda da Mata fazem parte da minha história, de minhas raízes mineiras.

>>> Publicado nas páginas 29 a 39 do livro "Poemas e Crônicas de Borda da Mata - Portfólio Histórico-Cultural" - Editora PerSe (2024).