Os provérbios e o título mundial de xadrez
Está ocorrendo, em Singapura, a disputa do título mundial de xadrez entre o atual campeão do mundo, o chinês Ding Liren, contra um dos muitos prodígios indianos do esporte, o jovem de 18 anos, Gukesh Dommaraju.
Como vem acontecendo desde o início do confronto, logo após a partida, eu assisto à análise de cada jogo nos meus canais favoritos do Youtube. Ontem pela manhã, em um canal no qual sempre há uma frase sobre xadrez de algum célebre personagem histórico, estava lá – “O xadrez é a ginástica da mente”, do pensador francês do século XVII, Blaise Pascal. Por um momento, deixei de lado a análise do jogo e comecei a refletir sobre a frase e a enorme capacidade que as grandes mentes possuem para sintetizar uma ideia que explique concisa e brevemente o conceito de algo. Por vezes, não é a mente de uma única pessoa que forja essas sentenças, mas sim a mente coletiva de um povo que baseia suas experiências e observações do mundo e que são transmitidas ao longo de gerações por meio dessas frases curtas, os Provérbios.
Caso a disputa entre os dois Grandes Mestres de xadrez não fosse através de uma batalha no tabuleiro e sim por uma questão de qual povo detém os mais belos aforismas, China e Índia nos presenteariam com um combate de belos pensamentos sobre o homem e a vida. Quem sabe o primeiro duelo poderia ser entre a máxima chinesa “Espere o melhor, prepare-se para o pior e aceite o que vier” contra a indiana “Quando falares, cuida para que tuas palavras sejam melhores que o silêncio.” Quanta sabedoria esses dois povos orientais têm para nos ensinar mediante suas filosofias milenares!
No surgimento da filosofia ocidental, na Grécia antiga, há bastante influência desses dois povos, diferentemente do que foi levantado por alguns pensadores, em meados do século XIX, de que a cultura grega teria surgido espontaneamente, como um acontecimento singular e excepcional, conhecido como o “Milagre Grego”.
Neste mesmo século XIX, Arthur Schopenhauer, grande opositor de Hegel e de seu idealismo considerado o ápice do pensamento europeu, foi o primeiro filósofo do ocidente a abordar diversos temas das filosofias orientais que muito o influenciaram, principalmente o Budismo e os textos sagrados indianos. Por sua vez, Nietzsche, que teve na sua juventude Schopenhauer como sua maior influência, era um grande adepto dessas frases curtas que transmitem uma mensagem curta e direta, tanto é que escreveu algumas obras filosóficas construídas apenas por meio de aforismas, como “Humano, Demasiano Humano” de 1878 e “Aurora”, de 1881”. É muito conhecida a frase de Nietzsche na qual ele diz que pretendia falar em uma frase o que muitos filósofos não conseguiram dizer em uma vida inteira. E é do próprio Nietzsche uma das minhas frases preferidas e que, a meu ver, retrata com maior nitidez, exatidão e sobriedade o mundo no qual vivemos – “Não existem fenômenos morais, apenas interpretação moral dos fenômenos”.
Nietzsche argumenta que a moral não é uma propriedade inerente aos fatos, mas sim uma lente através da qual os interpretamos. Ou seja, os fenômenos em si são neutros, adquirindo uma conotação moral apenas quando passam pelo crivo de nossas avaliações e julgamentos. Essa perspectiva relativiza a moral, deslocando-a do reino da objetividade para o âmbito da subjetividade. Ao negar a existência de fenômenos morais intrínsecos, Nietzsche questiona as bases de sistemas morais absolutos e universais. Ele sugere que os valores morais são constructos históricos e culturais, moldados por forças sociais, psicológicas e políticas. A moral, nesse sentido, seria uma espécie de máscara que utilizamos para dar sentido ao mundo e legitimar nossas ações.
A disputa do título mundial, em Singapura, com seus lances calculados e estratégias complexas, nos revela um microcosmo da vida. Assim como os grandes mestres, navegamos por um tabuleiro repleto de incertezas, buscando a melhor jogada a cada momento. A filosofia, por sua vez, oferece-nos as peças para compreendermos as regras desse jogo, desvendando os mecanismos que movem nossos pensamentos e ações. Acompanhar esse batalha no tabuleiro tem sido um grande prazer para todos entusiastas e amantes desse jogo que, assim como os provérbios, tem atravessado os séculos.