PAPAI E SUA MENINA

Há um período na minha vida que se tornou um álbum de recordação preciosa, uma vez que me trouxe conhecimentos inúmeros, abriram-me horizontes, fez-me aprender a confiar, a imaginar, trouxe-me experiências inéditas!

Papai era inspetor de uma companhia de seguros que tinha negócios pelo Estado de São Paulo todinho e ele inspecionava os agentes, os negócios novos, mal resolvidos ou ainda por encerrar.

Viajava na maioria das vezes de trem, Companhia Mogiana, Paulista, Alta Noroeste, Vale do Paraíba e os ramais vicinais dessas companhias. Tinha uma Caderneta chamada Quilométrica, que o livrava de comprar bilhetes e era fornecida pela Companhia ferroviária e paga pela Companhia de Seguros.

Sempre viajava com um guarda-pó, que evitava que as fagulhas que saíam das chaminés da Maria Fumaça queimassem seus ternos de risca de giz, gabardine, linho, casimira. Aqueles ternos bem cortados que o deixavam elegantíssimo, ainda mais do que já era! Se isso fosse possível! Tinha chapéu de Panamá, brejeiramente inclinado para o lado ou, então, o de feltro para o tempo frio. Sempre viajava de terno, gravata com alfinete dourado, sapatos muito bem engraxados com meias combinando e abotoaduras também douradas na camisa. Um “dandy”!

Por causa desse trabalho dele, mudávamos muito e assim, fui conhecendo muitas cidades, escolas diferentes, uniformes, livros, colegas e professores novos.

As dificuldades dessas mudanças eram muitas para uma pequena menina, mas me deu uma imensa facilidade de adaptação; me fez versátil, sociável. Além, é claro, de aprender como embalar cristais, louças, porcelanas, bibelôs. Enriqueceu minha vida de coisas novas, passei por inúmeras situações inusitadas, fez-me entrar em muitos apuros, mas também me fez saber sair deles; foi liberando aos poucos a minha natural timidez de menina interiorana.

Meu pequeno mundo já não era tão pequeno! Conheci tanta coisa, tanta gente, tantos lugares que acabei desenvolvendo um gosto pelo desconhecido, por situações fora do comum. No decorrer da minha vida fui buscando sempre novos conhecimentos. Não mais o medo do desconhecido. Aprendi que coragem não é ausência de medo, mas é enfrentar coisas temerosas ou desconhecidas apesar de sentir medo. Tive que aprender a sair do convencional para ter êxito em meus propósitos. Nunca fui super protegida, nem por pai, nem mãe, nem marido. A vida me falou: se vira!

Lembro-me que papai ia me buscar no Colégio interno, no começo das férias ou nos feriados prolongados e mandava que preparasse algumas roupas numa malinha e de lá mesmo íamos para a estação de trem.

Outra coisa que aprendi bem cedo: arrumar a mala. Conseguir colocar um monte de coisas em uma pequena valise. Papai ensinava como dobrar as roupas para que amassassem pouco; como juntar os dois pés dos sapatos para ocuparem menos espaço. Tanto detalhe que me valeram pela vida afora nas inúmeras vezes em que tive que partir. E não foram poucas!

Ainda tenho essa sensação de que, de repente, vou ter que partir... Agora, nesta minha meia idade, mais do que nunca essa sensação está presente. Sensação, não. Certeza. (Só que para essa viagem próxima, não será preciso fazer a mala!!!...)

Que delícia quando ele aparecia no colégio e a vigilante ia me chamar! Eu nem perguntava para onde íamos. Não precisava. Alguma coisa nova, atraente, ia acontecer e, melhor ainda, eu sairia do colégio por alguns dias e com papai!

Eram horas e horas a fio dentro do trem, olhando a paisagem, perguntando coisas a ele, que nunca deixava de dar uma explicação lógica. Mostrava no mapa que carregava sempre, em que ponto estávamos, qual a próxima cidade, o que tinha de mais importante nessa cidade. Sabia até porque tinha aquele nome!

Às vezes ficava escutando os casos que contava ou suas conversas com outros viajantes, conhecidos dele. Ficava calada, com os olhos arregalados, prestando atenção naquele mundo cheio de tanta história. Depois, perguntava a ele as coisas que escutava e assim aprendi tanto sobre seguros, que depois de moça, fui trabalhar com eficiência em uma dessas Companhias; tratavam-me com muita consideração porque era “filha do Santos Dias”.

Gostava demais da hora das refeições. O vagão-restaurante era para mim um luxo! Papai me dava muita importância deixando que escolhesse o que comer. Sempre tinha sobremesa e, depois, ele tomava o cafezinho. Eu não podia tomar, não era bom para criança.

Lembro-me de um susto que ele me passou. O trem parara em uma estação. Papai tinha dito que ia descer um pouco e que eu ficasse sentadinha. Tudo bem. Vi quando desceu do trem e distraí-me olhando pessoas e coisas.

Depois que os passageiros desceram e outros entraram, o chefe da estação assoprou seu apito estridente, o trem apitou e começou a sair devagarzinho, ainda deu um último apito como a dizer adeus à cidade e pessoas que ficaram para trás.

Papai não voltou para perto de mim. Debrucei-me pela janela, perigosamente, a ver se o via na estação que se distanciava e nada. Fui até a porta mais próxima que separava os vagões e na ponta dos pés, tentei ver pelos vidros se ele estava no outro vagão. Nada.

Pensei até em caminhar pelo trem inteiro, para tentar encontrá-lo nos outros vagões, mas a obediência falava mais alto. (Fique sentadinha). Cheguei a imaginar que ele tinha ido ao banheiro lá na estação e que não tinha escutado o apito do chefe.

Comecei incontinente a imaginar o que fazer. Esperaria que o chefe do trem viesse para o meu vagão a picotar as passagens e avisaria a ele o que tinha acontecido. Deixaria que me sugerisse o que fazer, pois era mais velho que eu. Daria a ele o meu endereço, pois sempre viajava com um papelzinho com todos os meus dados no bolsinho do casaco. Idéia do Papai. Fiquei mais calma. Afinal, papai era conhecido de vários senhores ali no trem. Alguém faria alguma coisa a meu favor. Meu coração batia disparado, mas procurei ficar quieta e sem chorar!

De repente, para mim do nada, surgiu meu belo pai todo risonho, com um pacotinho de bala na mão, divertindo-se muito. Disse que tinha entrado na última porta do último vagão, justamente para ver como eu havia de agir em sua ausência. Perguntou-me o que tinha pensado e depois de saber, disse estar muito orgulhoso de mim, por ter tido idéias sensatas e não disparar a chorar! E o susto? Sua presença o fez ir embora.

Antes de eu ter que ficar no colégio interno, quando ele voltava de suas viagens para casa, para Bauru onde estávamos morando na época, trazia cópia das cartas que escrevia para acompanhar as apólices e me pedia que as pusesse em ordem alfabética por cidade. Dava-me uma moeda quando eu terminava, toda orgulhosa.

Depois, muito mais tarde, descobri que não havia necessidade daquilo. Ele apenas queria que eu aprendesse as cidades do Estado, o alfabeto e que ficasse perto dele.

Sentava-me no chão lustroso e cheiroso de cera de carnaúba, espalhando as folhas de seda conforme as letras. Ele ficava à mesa trabalhando em seus papéis.

Sempre perguntava onde ficava tal cidade, como ela era, se tinha alguma coisa de especial e ele respondia, contava como era, se tinha praça com coreto, igrejinha, se o hotel era bom; contava com pormenores como era o agente daquela cidade, como o tinha descoberto, se tinha alguma coisa mais engraçada ou interessante, e eu ficava, sentada no chão, com os olhos arregalados para cima, em sua direção, imaginação solta, esperando o final da tal história.

Às vezes, ficava tão ansiosa para saber o fim da narrativa, que pedia, interrompendo-o: ele morreu, papai? Não, menina, espera o fim da história. Para que pressa? Até hoje, quando escuto alguém contar história demorada, cheia de detalhes, sempre brinco com a pessoa, seja que assunto for:

- Você parece o meu pai. Então, morreu?

Uma vez me contou que a jardineira (ônibus) em que viajava estragou e as pessoas ficaram na beira da estrada aguardando ajuda. O tempo foi passando e a fome começou a incomodar os viajantes. Papai dirigiu-se a uma casinha mais ou menos à beira da estrada e perguntou se podiam preparar alguma coisa para comerem. O dono da casa logo se prontificou e disse que tinha carne seca e mandiocas cozidas. Tudo bem. Cada um pegou um pouco da comida e deu ao sitiante algum dinheiro pela ajuda. Papai ficou de lado.

- O senhor não come, moço?

- Obrigado, mas não consigo. E baixando o tom de voz, sussurrou: eu tenho dentadura, não vou conseguir mastigar essa carne.

- Não seja por isso, moço.

O homem passou uns pedaços de carne para um pilão de madeira que estava emborcado em cima do fogão de lenha, colocou um pouco de farinha e socou a carne até que virou uma farofa. Colocou essa farofa no prato com pedaços da mandioca cozida, e deu ao meu pai com uma colher.

- Pronto, agora o senhor pode.

Papai nem sabia como agradecer ao bom homem e comeu aquela gostosura. Os companheiros brincaram com papai por ter sido agraciado daquele jeito. Depois, todos tomaram água do poço e ficaram por ali até que os chamaram para continuar viagem na jardineira consertada.

Ele nunca se esqueceu dessa história e sempre contava para que a tivéssemos como exemplo da boa vontade e solidariedade de um pobre homem do campo.

Uma brincadeira que ele gostava de fazer comigo era adivinhar palavras do dicionário. Ele brincava tanto em casa como no trem, pois sempre carregava consigo um dicionário pequeno.

Ele abria em qualquer página e perguntava o significado de alguma palavra. Na maior parte das vezes, claro que eu não sabia, mas aí vinha o melhor: ele me fazia associar a palavra a alguma outra já conhecida minha, fazia eu prestar a atenção para a raiz dela a fim de descobrir seus derivados, os sufixos, se eram nomes de plantas, de animais, se era verbo, adjetivo, substantivo, etc. De um único erro, quanta coisa aprendia! Na vez dele, pasmem, raramente errava! Eu procurava as palavras mais esdrúxulas para que ele adivinhasse e ele ficava pensando, pensando, até que sugeria alguma coisa. Na maioria das vezes, o que dizia tinha muito a ver com a solução certa!

Ele não era letrado. Tinha feito somente os quatro anos primários na roça, o sítio Corisco onde morava, em Paraty. Mas lia muito, de um tudo; quando não sabia alguma coisa, o dicionário era sua solução.

E toda vez em que voltava para casa, trazia alguma lembrancinha para mim. Assim, ganhei o meu livro predileto: “Juca e Chico”, traduzido do alemão original para o português por Olavo Bilac, todo em versos, contando sete travessuras de dois meninos. Sabia-o de cor.

Já adulta, cheguei a fazer uma adaptação para o teatro, em um ato de 45 minutos. Eu interpretava a Viúva Chaves, o alvo predileto dos dois meninos. Apresentamos em uma igreja evangélica para as crianças da escola dominical. Que pena! Perdi esse livro num incêndio.

Quando já mocinha, deixei o colégio interno e voltei a Minas para morar com minha tia, as viagens maravilhosas junto a ele, em seu trabalho, acabaram.

Quando fiz 18 anos, saí de Minas e fui morar com ele e minha irmã em São Paulo, num apartamento.

Vieram outras viagens, diferentes. Ele chegava em casa e dizia:

- Quem se arrumar em meia hora, vai comigo para o Rio visitar as minhas primas. Vocês só têm meia hora!

Eu nunca deixei de ir. Não era somente para o Rio, podia ser para Paraty, sua cidade, para Santos, Belo Horizonte, sei lá mais quantas outras.

Minha irmã não conseguia se arrumar dentro do prazo estipulado e ficava pra trás. A gente brincava que ela demorava demais penteando as sobrancelhas, que eram lindas! Ela se parecia com a atriz Ava Gardner! Esse tempo que ele estipulava era o bastante para tomarmos o trem ou o ônibus.

Às vezes ele dizia:

- Vou para Uberlândia, mas antes vou dar uma passadinha no Rio de Janeiro e depois Belo Horizonte.

Se olharem no mapa, verão a volta que ele dava! Gostava muito dessas viagens malucas!

Eu me casei fora do Brasil. Ele foi ao casamento e depois nos separamos. Tempos depois teve infarto. Disse o médico que foi de tristeza.

Quando me avisaram, resolvemos vir embora para o Brasil definitivamente. Esse mal não o levou, graças a Deus. Durou muito tempo ainda.

Quando adoeceu gravemente, já idoso, e o médico mandou que saísse da Capital, para não ficar sozinho, escolheu vir morar comigo. Tratamos dele, meus filhos e eu, durante dois anos. Teve câncer intestinal.

Em 1981, disse que queria ir passar o Natal com minha irmã em Goiás, onde ela morava. Tinha, então, 80 anos.

Era fim de Novembro.

Levamos para São Paulo a fim de ir de avião até Uberlândia. Eu o vi andando com sua famosa maleta azul, ainda ereto, elegante (ele nunca soube sobre seu mal).

Lá em Minas, ele quis ver a tia que me criou e só depois foi com meu cunhado, de carro, até Itumbiara. Chegaram às 18:30.

Como sempre muito galante, disse à manicura de minha irmã que estava lá:

- Se eu fosse mais novo, casava com você, porque você é muito bonita, viu?

Jantaram e mais tarde foi-se deitar para descansar. Por volta das 22:00, queixou-se de muito calor e minha irmã mudou-o de quarto. Apoiou a cabeça em vários travesseiros e ficou quietinho. Minha irmã deitou-se na cama ao lado. Lá pelas tantas fez um leve aceno com os dedos e ela chegou-se a ele perguntando se precisava de alguma coisa. Ele suspirou e morreu.

Era por volta das 4 da madrugada quando ela teve controle para me avisar. Fui até lá para o enterro. Não quis vê-lo no caixão nem acompanhar o féretro. Ele já não estava lá, estava, sim, dentro do meu coração e a força da sua personalidade por toda parte.

Certa ocasião, muitos anos antes disso, ao despedir-se de mim para fazer uma viagem pelo litoral brasileiro, ele me contou que minha irmã fez com que perguntasse na agência de viagem o que fariam com ele se morresse no caminho e ele sossegou-a dizendo que guardavam o corpo para entregar à família ou mandavam de volta se a família tivesse dinheiro para pagar a viagem de avião. Aí comentou:

- Você não liga para essas coisas, não é?

- Não, papai, eu não ligo. Prefiro ter o Senhor em espírito para me ajudar a zelar pelas crianças. O “presunto” pode ficar para minha irmã. Falei brincando.

Pois é, aconteceu isso mesmo. Ficou comigo até o fim da vida e faleceu perto da minha irmã e ficou sepultado por lá mesmo.

Comigo estão sua memória tão rica, seu exemplo de vida e de caráter, que tanto me valeram na educação de meus filhos. Ele foi a referência moral e de bons costumes para as crianças. Sempre dizia a eles: - Vovô Zé Dias não faria isso...E meus filhos mudavam o comportamento.

Ficaram as lembranças de suas histórias divertidas.

E estas minhas maravilhosas recordações de Papai e sua menina.

Rachel dos Santos Dias
Enviado por Rachel dos Santos Dias em 17/01/2008
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