Sandices VI
Posso afirmar, de certo modo, que tenho medo de dormir — é mais fácil resumir assim. Não me refiro ao ato propriamente dito, pois cobiço e procuro o sono, e sim à transição, à passagem entre a consciência e o estado oposto, quando, em essência, soltamos o volante: sinto-me à beira da desintegração, a mosca de Cronenberg, destruindo meu material genético para reformá-lo ao concluir a travessia, o que aumenta, portanto, o risco de grave alteração interna (e isso parece frequente).
Na manhã seguinte, ações instintivas voltam a exigir pensamento, e hoje, por exemplo, pego-me calculando a matemática de andar: qual é o ritmo ideal? E quantos passos por minuto, exatamente, em um metrônomo? A que ponto é evidente que me esforcei demais? O que faço com meus braços, em que ângulo os balanço? Por reflexo, enterro as mãos nos bolsos, admitindo cruel derrota. Eu acordei do avesso.
Enquanto tento realinhar meus eixos, disperso no vagão, outro pedinte de uns quarenta, ancorado pelas próprias pernas, pede doações alegando que caiu de um telhado e ficou paraplégico — caminha, no processo, habilmente em meio à multidão. Ajudem-me, diz ele, se vocês forem bons cidadãos.
A coerência irracional da normalidade será meu fim. Tanta calmaria, feito tanto isolamento, desconecta os nervos da sanidade. Talvez um pouco de discórdia evite que a lucidez ganhe textura de prisão e, infelizmente, a vida tem sido ótima. Ao chegar em casa, vou descendo as escadas da entrada e avisto, pela janela quebrada do porão externo, algo que me faz parar.
Babalu era vira-lata e morou na rua. Foi encontrada com dois anos, cega de um olho e — descobrimos depois — grávida. Teve onze filhos. E o que deveria ser abrigo provisório logo virou lar permanente, desfecho óbvio que, no fundo, prevemos. Forte e dócil, plácida e santa, carregava infinita ternura em seus traços: animais resgatados têm um tipo de afeto inexplicável, gratidão tão pura que desconcerta. Ela me deu o amor que eu sequer merecia.
Em tempo, a idade trouxe problemas ortopédicos que inutilizaram suas patas traseiras, tornando-a imóvel; só conseguia se levantar se a erguêssemos com uma corda, e caía, de novo, sempre. Após cada tratamento ineficaz, gritava de dor, e progrediu, deteriorou até que pude pressentir, com absoluta certeza, que o momento se aproximava. Eu estava ajoelhado na sala, cativo de uma noite muda, vendo-a respirar ora sim, ora não e me encarar ainda terna, inteira amável, quando fui obrigado a me despedir.
Essa pequena mãe, que sofreu sem razão e sem perder a graça, repousa agora em uma urna delicada, detalhada em rosa e branco, sobre azulejos espalhados no porão, e me acenou em meu retorno ressentido. Quis abraçá-la, o que restou, como se fosse a mesma. Ainda dá vontade de chorar.