O VELHO E O MENINO

 

 

Uma madrugada ruim. Netflix. O filme é "Relatos do Mundo", com Tom Hanks e a maravilhosa garotinha Helena Zengel (2020). O velho capitão Jefferson Kidd e a menina branca criada por índios, Johanna Leonberger, estabelecem uma relação de afeto das mais belas do cinema.

Pensei: felizes as pessoas que tiveram o afeto necessário na infância, porque é de lá que vamos buscar as boas relações e a segurança de que outros humanos são bons.

Há momentos não compreendidos quando se realizam e só podem ser percebidos na distância do tempo.

Já estou velho e minha mente capta as imagens de uma época muito distante, da infância. Agora sim, estou apto para atribuir-lhes significado.

Seis, sete anos, ou, talvez, dez, trepado no ingazeiro eu comia as frutinhas doces, sem entender que aquele gosto permaneceria na minha história.

Embaixo, sentado em uma cadeira “abre e fecha”, estava o seu Ariodantes, militar aposentado, senhorio da casa onde morávamos. Lá de cima eu falava enquanto comia ingá.

Confesso que não me lembro dos assuntos. Sei apenas por informação de terceiros.

Minha mãe conta que, em certo dia, seu Ariodantes perguntou como eu sabia de tantas histórias da Bíblia, ao que ela respondeu que isso se devia à minha frequência à escola da igreja.

Muitas vezes, estava ali, pela calçada, perto ou longe, quando o velho Ariodantes saía com sua cadeira e a armava para sentar. Então, eu me aproximava para conversar.

Não me atraía com balas ou qualquer guloseima, até porque não me dava tais doces. Era a conversa, da qual não me recordo, que estabelecia o interesse.

Sei que houve um tempo em que o velho me ensinava as difíceis danças dos números, a Matemática infernal, para que o menino pudesse ser aprovado nos estudos.

Hoje já não vemos velhos conversando com meninos. Talvez estejam todos recolhidos em apartamentos e áreas reservadas de condomínios. Porém, se havia desses colóquios entre os extremos das idades, uma conversa entre a ternura da velhice e a despreocupação da infância, isso se devia ao fato de que nós, os meninos, éramos livres e vagávamos pelas ruas, colhendo frutas, observando formigas, deitados e olhando os urubus que voavam em círculos.

A liberdade vinha porque tomávamos sol intenso, jogávamos bolitas e soltávamos pandorgas.

Nós éramos livres, isso é o que importa nessa história. Nós éramos livres para conversar porque falávamos o que queríamos falar, é a infância.

Não há mais esses encontros de velhos e meninos. O medo, os celulares, o excesso de atividades educacionais, o abandono e a solidão dos velhos e das crianças não permitem mais essas conversas bonançosas e amenas, cheias de sabedoria e curiosidades.

Um dia, não sei quando nem como, soube que o seu Ariodantes havia morrido. Não chorei nem lamentei, provavelmente não entendia a extensão da morte. Ele me reaparece quando me aproximo dos setenta anos e, como o capitão Jefferson Kidd, simplesmente diz que há bons corações na humanidade.

Agora, eu sou o velho!