A pipa (Crônica 6)
Fazia um certo tempo que eu não ouvia, da boca de uma criança, o desejo de soltar pipa, ainda mais nesta época, quando as crianças estão cada vez mais tomadas pelas telas de celular, deixando de lado a vivência da infância, as brincadeiras de rua e o aprendizado que a rua nos proporciona. Lembro que, naquelas férias de escola, ficávamos até tarde da noite, brincando e nos sujando. Mas, certo dia, meu primo de 10 anos chegou até mim e disse:
— Prima, vamos comprar pipa comigo ali na esquina da praça? Está 4 reais, você tem?
Achei engraçado, porque, ao mesmo tempo em que ele me convidava para ir com ele, me perguntava se eu tinha o dinheiro para comprar a pipa. De qualquer forma, aceitei o convite e fui com ele. Lá, havia diversas pipas, linhas e rabiolas, mas uma em particular chamou minha atenção: uma pipa do Corinthians.
Ela me fez lembrar de um momento muito especial que vivi com meu pai na infância. Eu era bem pequena, e naquele entardecer, o clima estava fresco e o sol já começava a se esconder. Havíamos acabado de sair do bar do Flecha. O bar do Flecha tinha um cheiro peculiar de doce e pinga, mas era um lugar que eu adorava ir com meu pai, porque lá ele me "estragava". Ele me deixava comer canudo de doce de leite, brincar no fliperama e, de vez em nunca, até molhava a ponta do meu dedinho no copo de cerveja dele. O bar ficava a poucos passos de casa, pois morávamos no final da rua Cherubim de Matos. Lembro até hoje do nome da rua, porque sempre achava engraçado ouvir ele ou minha mãe dizendo o endereço para a moça do caixa do mercado entregar as compras.
Neste dia, estávamos indo embora do bar, e eu estava no colo do meu pai. Ao chegarmos em frente à nossa casa, paramos e ficamos observando, de longe, a molecada soltando pipa no terreno baldio perto dali. Foi quando vimos uma pipa enorme cair. E, naquele momento, o espírito de criança do meu pai aflorou. Ele me colocou sentada em sua nuca, travou minhas pernas debaixo de seus braços e pediu para que eu me segurasse bem firme nele. Enquanto isso, ele me segurava para que eu não caísse. Então, juntos, começamos a correr em direção à pipa.
Quando a pipa estava quase ao alcance, ele me tirou de seu pescoço e me incentivou a correr sozinha para pegá-la, pois, como a pipa havia caído na rua ao lado de casa, estávamos mais próximos do que a molecada. Eu corri e consegui pegar a pipa. Meu pai veio em minha direção como se estivesse comemorando uma vitória, como se tivesse ganhado a Copa do Mundo ou como se eu tivesse feito o gol.
E, quando respiramos fundo e olhamos para a pipa, percebemos que ela era do Corinthians!
Levamos a pipa para casa e, naquele mesmo dia, meu pai me colocou sua camiseta do Corinthians. Ela ficou tão grande em mim que parecia um vestido. Mas lembro exatamente do sorriso dele, da alegria e da euforia dele.
Meu pai teve seus altos e baixos, assim como tem até hoje. Hoje, com a idade que tenho, consigo entendê-lo de uma certa forma. Claro, não deixo de culpá-lo ou responsabilizá-lo por algumas coisas que ele fez e que me envolveram, como outras lembranças que tenho com ele e que ainda me machucam.
Mas, quando sentei com ele em um bar e compartilhamos a mesma cerveja, comecei a introduzir assuntos e a puxar um pouco sobre a vida dele: como era quando ele era criança, adolescente, até o momento em que eu nasci. Foi aí que entendi que, para ele, também não foi fácil. Ele me contou como o pai dele o criou, de como ele e meus avós iam para a roça, e como apenas minha avó o ouvia e ajudava. Como se esse papel revertesse.
Depois disso, parei de julga-lo, porque percebi que, mesmo aos 49 anos, ele ainda era um garoto. Um garoto ferido!
Foi aí que me libertei. Eu já não queria mais ser essa garota ferida também... E foi escrevendo que encontrei minha liberdade. Encontrei o que procurava, procurava por tudo pra fora, para assim aliviar e entender que também sou gente, assim como ele.
Assim, tirando um pouco o peso da minha intensidade de ser!
"Poesia: Intensidade de ser"