Entre Sem Bater - A Casa Branca

H. L. Mencken disse:

"... em algum dia grandioso e glorioso, o povo simples da terra finalmente alcançará o desejo de seu coração, e a Casa Branca será adornada por um completo idiota ..."(1)

Um estadunidense que viveu e manifestou oposição à entrada dos EUA nas duas grandes guerras, tem muito mérito. A sua crítica cultural(*) ao seu próprio povo deveria receber uma reflexão para certos povos que endeusam mitos e lendas. Podemos dizer que a frase de Mencken sobre a Casa Branca é somente uma de suas muitas pérolas sobre o futuro que chegou.

CASA BRANCA

Alguns símbolos, podemos dizer sem medo de errar, certamente são globais, dizer universais é exagero. Algumas frases e pensamentos, sobretudo quando referem-se a estes símbolos, costumam incomodar algumas pessoas. Alguns provérbios, quando queremos associar a simbolismos, podem piorar muito as coisas. Por exemplo, existe um provérbio que fala sobre animais dentro de um palácio. A moral da história é que estes animais rebaixam qualquer palácio à categoria de curral e não elevam os animais à categoria de gente.

Em 1920, o jornalista e ensaísta HL Mencken disparou uma frase que atravessava o século como uma premonição sombria. Ele viu o dia em que o “povo simples” teria, no coração do poder americano, um representante à sua altura. E, inquestionavelmente, equiparável à baixa estatura moral, ética e civilizatória de muitos naquela nação. A vitória de Donald Trump nas eleições de 2024 para um segundo mandato é uma comprovação de que o sistema democrático americano é estranho. Em outras palavras, por mais robusto que possa parecer, é permeável a forças que o transformam em uma caricatura de si mesmo. Como se não bastasse, a recondução de Trump é um espelho grotesco do espírito de seus eleitores: racistas, homofóbicos, prepotentes.

A ironia de Mencken era ácida, mas presciente. Quando ele imaginou a Casa Branca com um completo idiota(2) como adorno, não se tratou apenas de uma crítica elitista à democracia. Ele antecipou um cenário em que as falhas estruturais do sistema representativo americano — com seu colégio eleitoral — é um absurdo. Enfim, a influência desproporcional de poucos estados é uma ferramenta para que a mediocridade assuma o trono (Casa Branca).

DEMOCRACIA CAPTURADA

Nos EUA, a noção de “um homem, um voto” é uma ficção cuja disseminação é uma estratégia cuidadosa. O colégio eleitoral - sistema que protege as elites desde o século XVIII - permite que um candidato com menos votos populares vença a eleição presidencial. Foi assim em 2000, com George W. Bush, e novamente em 2016, com Trump. Outrossim, em 2024, além dos estados-chave, os idiotas aumentaram de contingente e votaram no seu malvado favorito.

Entretanto, o mais preocupante é o fato de Trump não ser uma anomalia do sistema, mas seu subproduto lógico e irracional. Sua retórica populista apelos emocionais, encontram ressonância em uma população cuja educação consumista é para consumir platitudes. Quando Trump vocifera contra imigrantes, celebra teorias conspiratórias e defende armas para qualquer um, não é uma performance. É, com toda a certeza, um posicionamento que seus eleitores querem e praticam, e com o aval da Casa Branca.

IDENTIDADE NACIONAL FRAGMENTADA

Assim sendo, a base de apoio a Trump transcende diferenças socioeconômicas, de gênero e outras especificidades. Os trabalhadores que acreditam, erroneamente, que o futuro mandatário entende seus problemas, compõem a massa ignara. Por outro lado, entram na mesma trincheira as elites que o apoiam por conveniência fiscal e manutenção de privilégios.

Desse modo, a essência é uma identificação cultural de grande parte da nação estadunidense, a começar pelos símbolos como a Casa Branca.

Trump não se envergonha do seu racismo disfarçado de “patriotismo”, da sua homofobia mascarada de “valores tradicionais”. Adicionalmente, esbanja outros preconceitos e prepotência sob o disfarce “autoconfiança”, é a voz dos idiotas mandando no mundo. Esses atributos, alvos de denúncias frequentes, são virtudes magníficas para todos os seus candidatos. Eles veem nele a personificação do homem americano "comum" — ele se gaba de suas falhas e transforma sua ignorância(3) em uma arma política.

É especialmente revelador como Trump explora a nostalgia de um passado mítico, quando os EUA eram (segundo seus apoiadores) “grandes”. Essa fantasia reconstruiu uma nação branca, cristã e heteronormativa, e com armas Surpreendentemente, ignoram que tal época sempre foi excludente para milhões de seus habitantes. Ao prometer um retorno a essa “grandeza”, ele habilmente canaliza as preocupações de eleitores que temem perder sua posição no mundo.

O CUSTO DO FANFARRÃO

Embora Trump seja, frequentemente, uma figura cômica ou trágica, os impactos de sua liderança são tangíveis e devastadores. Sob seu primeiro mandato, a política de separação de famílias imigrantes nas fronteiras desumanizou milhares de pessoas. O descaso com a crise climática, substituído por um nacionalismo energético dos combustíveis fósseis, acelerou o impacto das mudanças climáticas. A sua manipulação da verdade, com mais de 30 mil afirmações falsas ou enganosas durante seu mandato foram aterrorizantes. Desta forma, ele conseguiu corroer a confiança pública na informação e o evento Cambridge Analytica(4) é a prova inconteste.

O retorno de Trump ao poder em 2024 não significa apenas um renascimento dessas políticas, mas uma validação de seus propósitos. Sua figura carismática, que mistura arrogância e ignorância, é extremamente aceitável pelos  seus apoiadores e eleitores. Eles não o elegeram apesar de suas falhas, inclusive de caráter, mas por causa delas. Um fanfarrão, condenado por corromper as pessoas a mentirem, na Casa Branca.

FUTURO INCERTO?

A frase de Mencken é forte porque Trump é, de fato, um presidente à imagem e semelhança de uma parte do povo americano. O populismo de Trump é um retrato fiel de uma nação em vertigem. Aquele hipócrita “povo simples” se orgulha de sua simplicidade e vê na complexidade uma ameaça. Ele não é apenas o produto de um sistema falho, mas de uma cultura que celebra o espetáculo e rejeita o debate sério.

No entanto, se Mencken enxergava a ascensão de líderes ineptos como consequência, cabe perguntar se esse ciclo é reversível. O desafio para os críticos de Trump e dos efeitos que virão não é apenas denunciá-lo, mas compreender e transformar as possíveis causas. Caso contrário, a profecia de Mencken continuará a se realizar, uma e outra vez.

Palavrinha final: Quem pensa que somente a Casa Branca tem habitantes malvados, aguarde a epidemia evoluir para outras nações. Devemos pensar que o BRICS(5) e quem enfrenta esta arrogância estadunidense deve ter nosso apoio.

"Amanhã tem mais ..."

P. S.

(*) Muito além da crítica cultural, todas as impressões de Mencken devem merecer atenção. Com toda a certeza, particularmente, discordo de muitas das suas ideias e opiniões, mas a sobre a Casa Branca é uma opinião lapidar.

(1) "Entre Sem Bater - H. L. Mencken - A Casa Branca" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2024/12/03/entre-sem-bater-h-l-mencken-a-casa-branca/

(2) "Entre Sem Bater - Tati Bernardi - Idiota Feliz" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2024/05/31/entre-sem-bater-tati-bernardi-o-idiota-feliz/

(3) "Entre Sem Bater - Isaac Asimov - A Sua Ignorância" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2023/12/13/entre-sem-bater-isaac-asimov-a-sua-ignorancia/

(4) "O que a Cambridge Analytica realmente fez pela campanha de Trump?" em https://www.wired.com/story/what-did-cambridge-analytica-really-do-for-trumps-campaign/

(5) "Entre Sem Bater - Vladimir Putin - Os BRICS" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2023/07/27/entre-sem-bater-vladimir-putin-brics/