COMO ESCAPAR DA AMAZÔNIA
Provavelmente, você nunca ouviu falar em um lugar chamado Lábrea. Eu também nunca tinha ouvido, quando me mandaram para lá em agosto de 1980. Lábrea fica a 800 km de Manaus (em linha reta) à margem direita do Rio Purus, que nasce no Peru, passa pelo Acre e desemboca no Rio Solimões.
Chegar a Lábrea foi fácil. Bastou passar no concurso do Banco do Brasil e me nomearam para lá. O difícil foi sair, como verão mais à frente.
Fiz o concurso no Ceará e quando me despacharam para o Amazonas, disseram que eu poderia pedir transferência depois de um ano. De fato, podia, no entanto, pedir era uma coisa, ser transferido era outra totalmente diferente, e isso não me disseram.
A cidade, naquele tempo, não era o que se poderia chamar de boa para morar. Não havia estrada de acesso. Só se chegava de avião ou de barco em uma viagem de sete dias saindo de Manaus. Faltavam serviços de saúde adequados, saneamento, educação e lazer.
Lábrea era, na verdade, uma clareira no meio da floresta amazônica, com uma população de 13 mil habitantes uma boa parte de índios, e quando eu digo índios, eram índios mesmo, do tipo que nem falava português e ainda que falasse, não queria conversa com brancos.
Muitas doenças brabas e quando eu digo brabas, eram brabas mesmo, como por exemplo, hanseníase (lepra), malária (60 casos por semana), febre negra (doença hepática que diziam nesse tempo que nunca o paciente conseguia chegar vivo no hospital), só para citar algumas.
Havia dois hospitais: a Fundação SESP que atendia basicamente os portadores de hanseníase, e o hospital estadual que atendia o restante dos pacientes. Dentista só tinha um na cidade.
Minha vida consistia em trabalhar, e o lazer que existia era ir para a praça bater papo e beber cerveja ou ficar em casa jogando canastra. O calor era insuportável. A gente vivia molhado, ou de chuva, que era quase todo dia, ou de suor, devido à alta temperatura e umidade da região. A energia elétrica era desligada à meia-noite, pois era de gerador a óleo diesel, sendo que às vezes faltava óleo e a cidade ficava totalmente às escuras. Outra opção, que me arrisquei duas vezes, era pescar. O rio tinha muito peixe, porém a floresta era cheia de perigos.
Corriam boatos de ataques de onça e de sucuri, sem contar que na água tinha um peixinho chamado candiru, um parasita translúcido de uns 3 cm, que era um terror. Ele entrava pelos orifícios do corpo, principalmente no orifício que você está pensando e fazia grande estrago, pois dentro, seu corpo espinhoso na cabeça, se abria feito um guarda-chuva e só saía por cirurgia, logo, todo cuidado era pouco, para entrar nas águas turvas do Purus.
Sinal de televisão, não havia, mas todo dia vinha de avião pela TABA – Transporte Aéreo da Bacia Amazônica, uma fita cassete com a programação da Globo e o sinal era transmitido de uma estação local e assim a gente assistia ao Jornal Nacional sempre com um dia de atraso. Também não tinha DDD, mas tinha um posto de serviço para quem quisesse fazer uma ligação interurbana, aos berros, que dava para a cidade toda ouvir, menos a pessoa para quem se ligava.
Nessa vidinha quase mais ou menos, depois de um ano estava louco para ir embora. Ocorre que o gerente da agência disse que não liberaria nenhuma transferência a não ser que viesse algum funcionário transferido para substituir, mas isso era praticamente impossível. Quem é que iria querer pedir transferência para um lugar desses?
Observei que todos os postos efetivos chegaram à agência como eu, vindos de outros Estados, de várias partes do país, mas ninguém da própria cidade.
Não foi difícil entender o motivo. Devido à baixa qualidade do ensino, nunca ninguém da cidade havia passado no concurso do Banco do Brasil, então, cheguei à conclusão que para eu sair, precisaria que alguém da cidade passasse no concurso e assumisse lá.
Por sorte, saiu um edital de concurso para o Banco do Brasil e imediatamente montei um cursinho.
Reuni uma equipe composta por um engenheiro da COMARA - Comissão de Aeroportos da Região Amazônica, uma freira do convento de Lábrea, um colega do Banco e eu.
Conseguimos matricular 40 alunos. O problema foi que só podíamos dar aulas à noite e metade dos matriculados estudava nesse horário. Fizemos então o seguinte horário de aula: início às 17 horas que era quando eu saia do Banco, e suspendia às 19h para o pessoal ir para a aula normal, retornando às 22h indo até à meia-noite.
Era puxado para a moçada assistir aula até zero hora e, nos 3 meses do curso, muitos desistiram, de modo que dos 40 só foram até o fim uns 15, mas felizmente, passaram 7 no concurso.
Foi uma grande vitória. Fiquei muito mais feliz do que eles. Passei uma semana comemorando. A essas alturas eu já ia fazer dois anos em Lábrea, quando foram nomeados os 7 heróis que conseguiram passar.
Após a posse dos novatos começou a chegar transferência para os veteranos. Uma... duas... três... quatro... e a minha transferência, nada.
Entrei em desespero. Pensei: quando chegar a sétima, se não for a minha, nunca mais vou sair daqui.
Tomei uma decisão drástica. Fui, de avião, a Porto Velho/RO, que fica a 210 km, apenas para dar um telefonema.
Entrei na TELERON – Telecomunicações de Rondônia S.A. e pedi uma ligação para Brasília.
Quem tem mais de 40 anos deve lembrar das cabines telefônicas para fazer ligações DDD que havia em todas as grandes cidades, quando telefone em casa era coisa de gente rica
A ligação que pedi foi para o FUNCI/MOVIM, que era o setor do Banco que cuidava das transferências, e eu sabia o nome do chefe, pois constava num livro que toda agência do banco tinha, o catálogo de telefones do Banco do Brasil, uma espécie de páginas amarelas do Banco.
Uma secretária atendeu: — Banco do Brasil, FUNCI MOVIM. — Eu disse: gostaria de falar com o Sr. Domingos (esse era o nome do Chefe) e ela respondeu — fala de onde? — Porto Velho — você é o gerente da Agência de Porto Velho? — Não, respondi. Ela disse, com muita educação, mas em tom firme: — pois peça, por gentileza, para seu gerente ligar. Não posso passar a ligação, desculpe, tenha um bom dia — e desligou.
Eu saí da cabine igual um zumbi. Minha cabeça dava voltas, as pernas tremiam, o choro veio até os olhos e voltou deixando uma lágrima represada, pela vergonha, no canto do olho direito. O coração batia a ponto de sair pela boca. O que eu vou dizer quando voltar? Como é que vou sair daquela cidade? Devo pedir demissão? Que merda!
Saí porta afora e sentei na calçada para pensar.
Depois de uns 30 segundos levantei, entrei novamente e pedi outra ligação para o segundo número que eu tinha do mesmo setor.
Seguiu-se o mesmo diálogo, agora com outra secretária. — Banco do Brasil, FUNCI MOVIM. — Eu disse, gostaria de falar com o Sr. Domingos e ela respondeu — fala de onde? — Porto Velho — você é o gerente de Porto Velho? — Não, sou de Lábrea — ok, só um momento. — Em seguida, uma voz masculina. — Domingos falando...
Emocionado, quase chorando, expliquei o motivo de minha ligação, fazendo aquele drama. Disse que queria voltar para o meu Nordeste, morar numa Capital ou perto da praia... ele interrompeu: — você não quer nada, né? — E após perceber que eu não era gerente de coisa nenhuma, indagou por que eu disse que era o gerente, se não era. Expliquei que não menti, pois, a secretária havia perguntado se eu era o gerente de Porto Velho e eu disse que era de Lábrea, mas não disse que era o gerente de Lábrea. Ele riu entendendo a "malandragem", disse que tinha gostado da manobra para conseguir meu objetivo e, após consultar as vagas existentes no Nordeste, me forneceu o nome de 5 cidades para eu escolher em qual delas ia querer morar. Duas de Pernambuco e três do Ceará. Quinze dias depois eu estava transferido para Palmares, em Pernambuco.