Entre Sem Bater - Sombras e Trevas
Charles Dickens disse:
"... existem sombras e trevas neste mundo, mas a luz as eclipsa ..."(1)
É provável que ser crítico social, em tempos de revoluções verdadeiras, poderia provocar a ira de muitas pessoas poderosas. Quando Dickens fez referência às sombras e às trevas em contraposição à luz, fazia muito sentido. O romancista entendia que a verdade(*) era a alternativa para acabar com as trevas das mentiras e dos mitos(2).
SOMBRAS
Certamente, os tempos, as ideias e a visão das pessoas mudaram muito, desde que as revoluções (verdadeiras) apareceram na Europa. Dickens viveu, de fato, numa época de trevas, sombras, obscurantismo e muitas perseguições. Fico imaginando o que aconteceria com os propagadores de mentiras da atualidade.
Será que algum influenciador e compartilhador de mentira mereceria a fogueira ou desterro definitivo?
Essa metáfora, potente em seu tempo, ressoa de maneira ainda mais perturbadora no contexto atual. Atualmente, as redes sociais moldam percepções, comportamentos e até a própria noção de realidade. O que vemos hoje não é apenas uma destruição da verdade, mas uma transformação estrutural de nossa sociedade. A luz parece se apagar gradativamente, dando lugar às trevas da ignorância, a falta de discernimento crítico e a debates estéreis.
A VERDADE E O MUNDO DIGITAL
No mundo digital, a verdade deveria brilhar mais forte do que nunca, #SQN. Com acesso instantâneo a uma quantidade infinita de informações, era de se esperar que bastaria ter uma conexão para ter conhecimento. Porém, o oposto aconteceu, quanto mais informação, a ignorância e a preguiça mental(3) avançam. A supervisão de conteúdos nas redes sociais criou um ambiente em que a verdade não é apenas relativizada, mas frequentemente sufocada por narrativas fabricadas.
As fake news — criadas puramente para enganar — tornaram-se uma arma poderosa para manipular opiniões, disseminar ódio e dividir sociedades. Os algoritmos que alimentam as nossas redes sociais privilegiam o engajamento acima da veracidade. Assim sendo, essas mentiras ganham atração com uma velocidade assustadora. Por outro lado, a verdade, frequentemente mais complexa e menos atraente, luta para obter atenção. Assim, as sombras que Dickens associava à mentira se expandiam, obscurecendo a capacidade das pessoas de entender a realidade.
Vivemos, com toda a certeza, num inferno digital(4) que colocaria Dante completamente sem palavras.
O IMPACTO NAS GERAÇÔES DIGITAIS
As gerações que cresceram imersas no mundo digital enfrentam desafios únicos, sem ter noção deles. Certamente, a sobrecarga constante de informações, os desorienta para a alternativa das fontes de conhecimento. Essas gerações, inquestionavelmente, correm o risco de se moldarem pelas mesmas trevas que consomem a sociedade. A atenção superficial — característica de quem consome conteúdo em feeds infinitos — prejudica a capacidade cognitiva e a reflexão mínima.
Além disso, o ambiente digital cria bolhas de informação, nas quais os usuários submetem-se apenas a pontos de vista que reforçam suas crenças. Isso solidifica a ignorância, alimenta a polarização estéril e tornou-se um dos maiores desafios contemporâneos em nossas sociedades digitais. Ao invés de buscar a luz da compreensão e do diálogo, muitos se enclausuram nas sombras convenientes de suas bolhas. Desta forma, rejeitam qualquer possibilidade de questionamento ou aprendizagem, o que é bastante confortável para os espíritos fracos(5).
DEMOCRACIA EM VERTIGEM
A privacidade da verdade afeta não apenas os indivíduos, mas também as bases de nossas instituições democráticas e da sociedade. As manipulação de eleições, por exemplo, com as campanhas de desinformação é um crime que continua impune. Por outro lado, figuras públicas e autoridades sofrem com o descrédito pelas narrativas falsas. Nesse ínterim, as crises reais passam ao largo dos clickbait em favor de teorias da conspiração que ganham popularidade e compartilhamentos. A confiança na mídia, nos governos e, surpreendentemente, até na ciência perdem para campanhas de mentiras. Por isso, encontramos uma sociedade altamente vulnerável e evidente fragmentação que interessa a pequenos grupos de poder.
Nesse cenário, as sombras e as trevas assumem outra forma e poder: a desesperança e o desalento. Sem dúvida, na verdade, as pessoas perdem a capacidade de agir coletivamente para enfrentar problemas globais. Temas Importantes como as mudanças climáticas, desigualdades e crises de saúde pública não passam de manchete de um dia.
A mentira, com toda a certeza, não apenas obscurece a realidade; ela paralisa a sociedade e as mentes.
O CAMINHO
Apesar da gravidade do problema, é provável que ainda existam caminhos possíveis para resistir às sombras, às trevas e ao obscurantismo. A educação midiática, por exemplo, é uma ferramenta poderosa, que pode capacitar as gerações digitais a questionar e serem céticas. Entretanto, verificar informações antes de aceitá-las como verdade, parece que não tem boa aceitação entre a maioria. E, por mais estranho que possa parecer, este comportamento não é uma questão etária, assola todos, dos 6 aos 90 anos. Como se não bastasse, não é tampouco, uma questão de gênero, raça, nível cultural e educacional.
Promover o pensamento crítico e a alfabetização digital é essencial para combater a ignorância e reconstruir a confiança na verdade.
Além disso, as plataformas digitais precisam assumir responsabilidade por seus impactos e consequências. Algoritmos que priorizam a desinformação devem mudar, e sistemas de verificação de fatos devem ser mais robustos. Essas mudanças, contudo, enfrentam resistência de interesses externos, e a restauração da clareza de Dickens está distante.
ENCRUZILHADA
Estamos em uma encruzilhada histórica, o avanço tecnológico e o atraso mental de uma grande parcela da sociedade. As redes sociais, em sua busca pela conexão, inadvertidamente abriram caminho para as trevas da desinformação e da ignorância. Desta forma, se nada mudar, caminharemos para um ponto de ruptura irreversível. Em outras palavras, as gerações digitais se apresentarão para a história como as mais iluminadas. No entanto serão as mesmas que, com todas as ferramentas para enxergar, escolheram a cegueira e a ignorância.
Contudo, ainda há tempo para redirecionar esse curso tortuoso, e o trabalho é árduo. Do mesmo modo que Dickens acreditou na luz da verdade, devemos lutar para reacendê-la no mundo digital. Isso exigirá, certamente, confiança, trabalho e comprometimento com uma reavaliação profunda de nossas prioridades enquanto sociedade.
Em suma, se conseguirmos, talvez ainda haja esperança de escapar das trevas e redescobrir a clareza e a transparência que Dickens imaginou.
No escuro, sombras,
monstros de ontem avançam –
crescer não os cala.
"Amanhã tem mais ...
P. S.
(*) Considerando que um filósofo disse que a verdade básica é que todo mundo mente, podemos afirmar que as sombras e trevas estão no comando. .
(1) "Entre Sem Bater - Charles Dickens - Sombras e Trevas" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2024/12/02/entre-sem-bater-charles-dickens-sombras-e-trevas/
(2) "Entre Sem Bater - John F. Kennedy - Um Mito" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2023/06/17/entre-sem-bater-john-f-kennedy-um-mito/
(3) "Entre Sem Bater - Liz Hurley - Preguiça Mental" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2023/03/10/entre-sem-bater-liz-hurley-preguica-mental/
(4) "Entre sem bater - Virgílio - O Inferno Digital" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2023/11/26/entre-sem-bater-virgilio-o-inferno-digital/
(5) "Entre Sem Bater - Giordano Bruno - Espíritos Fracos" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2023/08/16/entre-sem-bater-giordano-bruno-espiritos-fracos/