SENTIMENTO DE CULPA
Fim do expediente de trabalho, arrumo minhas coisas, despeço-me dos colegas que fariam horário diferente do meu, e parto em direção à estação do metrô.
Já na rua olhei para o céu escuro, com ares de tempestade vindo, mas imaginei que talvez quando descesse na estação de meu desembarque, já tivesse passado o pior.
Fim da viagem, e ao dirigir-me à escada rolante, percebo pessoas vindo no sentido contrário ao meu, com sombrinhas e guarda-chuvas nas mãos, o que denunciava chuva caindo.
Enquanto a escada subia, à frente, alguns degraus adiante, observei uma cena fofa, de uma criança dormindo no ombro da mamãe, e ao descermos no piso de acesso à rua, muitas pessoas aguardavam a chuva dar uma trégua para se locomoverem aos seus destinos.
Parei num canto, para observar o tempo, e como ventava muito, decidi também aguardar, e ao meu lado estava a mamãe com o filho, agora já acordado.
Peguei o guarda-chuva que sempre levo e fiquei olhando para a rua, esperando que a chuva diminuísse, para ir até o estacionamento onde estava meu carro, para ir para minha casa. Olhei para a mamãe, e percebi que ela não tinha um guarda-chuva, e eu, de forma gentil, me ofereci para dar carona, sem saber para onde ela ia.
Olhando para o mapa, no celular, ela disse que estava próximo do local, mas pelas indicações dela, não entendi onde estava o endereço procurado, apesar que conhecer bem a região. Como informou que se tratava de um prédio, onde tinham várias clínicas médicas, fiquei mais apreensivo, imaginando que o garotinho talvez precisasse de cuidados médicos.
Com a chuva dando uma pequena trégua, ela decidiu arriscar, e mesmo indo do lado contrário ao meu, saímos à procura do endereço, mas achando que seria melhor perguntar a alguém, paramos em frente a uma lanchonete próxima, quando ficamos sabendo que o correto seria voltar para a estação, e fazer o trajeto por baixo da avenida, sair do outro lado e andar por cerca de dois quarteirões.
Voltamos e ela agradeceu pelo gesto, desejou que Deus me abençoasse e partimos um para cada lado.
Ao chegar no estacionamento e fechar o guarda-chuva para guardar, parei um instante e aí me toquei sobre o tamanho de minha falha, e me indaguei: "por que, diabos, não deixei o guarda-chuva com a mamãe ?"
Claro que bateu um peso enorme na consciência, mas não dava para voltar atrás, até porque meu carro estava chegando, e fiquei como aquela imagem da despedida na cabeça, o resto da tarde, à noite, de madrugada, mas torcendo para que tivesse acabado tudo bem com a mamãe e o garotinho. Talvez mais alguém tivesse oferecido uma carona, ou quem sabe, ela teria entrado numa loja para comprar um guarda-chuva, mas nunca vou saber.
Pela manhã do outro dia, no caminho para o trabalho, estava de volta à mesma estação, e não teve jeito de não aumentar meu sentimento de culpa, pelo dia anterior, e fui descendo a escada. Ao chegar já próximo ao piso, observei que um jovem que ia na frente, havia deixado cair alguma coisa no chão, e sai correndo em direção ao objeto, e rapidamente deu para ver que se tratava de nota de dinheiro dobrada duas vezes, e já na catraca chamei a atenção dele, que aquilo era dele, e que havia deixado cair no chão.
Estranhamente ele pegou a nota, esboçou um sorriso, não agradeceu e ainda parou alguns metros adiante e ficou olhando para mim. Ao passar por ele, fiz um comentário qualquer, ele continuou me olhando, sem dizer qualquer palavra, e fui em direção ao ponto de embarque, sem vê-lo mais.
Fiquei pensando naquilo tudo, de ter ocorrido duas situações que colocaram à prova meu comportamento, deixando a impressão de que talvez Deus havia dado uma nova oportunidade para me redimir do dia anterior.
No final das contas, o problema é que me vejo como uma pessoa generosa, e não perco qualquer oportunidade de praticar um gesto simpático, de ajudar alguém, e ver que uma ação desta não ficou completa, ainda mais porque sou pai e avô, se torna um peso, que sei, logo passa, e uma hora vou esquecer de ficar me perguntando: "por que diabos, não deixei a porcaria do guarda-chuva, com aquela mamãe ?"
Fazer, o quê ? Segue a vida...!
Novembro de 2024.