URUGUAI
“Pobres no son los que tienen poco. Pobres son los que quieren mucho” (José Mujica)
Tivemos eleições no Uruguai. O país esteve em tal clima de tranquilidade que nem parece que se disputava a troca de comando. Sem turbulências, sem ameaças de rupturas, sem contestação de resultado das urnas.
Ganhou a esquerda. Ganhasse a direita, as coisas não seriam muito diferentes. Aliás, o revezamento do poder parece ser o combustível que mantém acesa a democracia por lá. O presidente Lacalle Pou não conseguiu eleger seu sucessor. Nem por isso fugiu para Miami, tramou golpe militar ou insuflou seus apoiadores a ocupar a Plaza Independencia, onde fica a sede da presidência. Civilizadamente parabenizou o vencedor e vai passar a faixa respeitando o ritual democrático, que há 4 décadas tem-se repetido religiosamente de 5 em 5 anos.
E a vida segue pulsando nesse estranho e admirável país em que, ao contrário do que acontece em certas repúblicas bananeiras, a direita e a esquerda são civilizadas e têm em comum o respeito às instituições que está acima de suas circunstanciais divergências ideológicas e que fazem do país um exemplo de estabilidade.
Os militares, depois que foram chutados do poder em 1985, não ousaram mais se intrometer na política. Mesmo porque o clima de belicismo entre as forças políticas se evaporou. Os temíveis tupamaros abandonaram as armas e participam da vida pública aceitando as regras do jogo democrático tradicional.
Também padres e pastores têm consciência da limitação de seu papel numa nação onde a laicidade do governo é levada a sério. O país tem por tradição impedir que membros das igrejas interfiram em assuntos de Estado. Sequer símbolos religiosos são permitidos em locais públicos. E cada cidadão pode exercer sua fé (ou falta dela) sem ser importunado pelos enxeridos e retrógrados Malafaias que atormentam nossa vida cá pra cima do Chuí.
Cercado por dois gigantes, Brasil e Argentina, que têm sofrido com tumultuados processos de polarização, o tranquilo povo uruguaio se vangloria em adotar em plena América Platina um modelo nórdico de civilização.
E as coisas não estão bem apenas na política mas também na economia. O país, quietinho, quietinho, já é o de maior renda per capita na região. A desigualdade social é baixa e a pobreza extrema foi erradicada, sem recorrer a revoluções armadas.
Não bastasse, tudo isso, nosso próspero vizinho sulista ainda está na linha de frente das conquistas sociais. Enquanto na república dos bolsominions e dos neopentecostais pleiteia-se a volta à Idade Média, o Uruguai orgulha-se em ter sido pioneiro em instituir o voto feminino e o divórcio, em reduzir a jornada de trabalho, em legalizar o aborto, em permitir a união homoafetiva.
Sem falar na política de combate às drogas, uma das mais avançadas do mundo. Lá todo mundo pode puxar um fuminho na rua sem provocar indignação dos ‘cidadãos de bem’. Liberada a cannabis, as autoridades notaram que não houve aumento de consumo entre os jovens e que o vício em álcool, droga aceita socialmente, é que era um problema bem maior. As gangues de narcotraficantes ficaram enfraquecidas e grande parte da grana que abastecia o crime organizado foi para o mercado legal.
Todos esses avanços foram chancelados por um povo progressista e bem informado. Não foi à toa que essa população agora elegeu para presidi-la não um militar, um policial, um pastor, um bilionário, um influencer ou um coach. E sim um professor de História!
E com tudo isso, os caras ainda se dão ao luxo de esnobar no futebol! Como pode um paiseco de 3,5 milhões de habitantes (menos gente do que a Zona Leste de São Paulo) ter conseguido faturar 2 copas do mundo? Desde que nos desbancou em pleno Maracanã em 1950, a Celeste nunca deixa de fazer bonito em torneios internacionais. Os aguerridos hermanos são motivados pelo brio e pelo amor à camisa como já fomos há algumas décadas atrás, antes de ascender a geração de corpos moles comandada por Neymar, movida por grana e festanças.
Este é o Uruguai. E o perfeito retrato desse país responde pelo nome de José ‘Pepe’ Mujica. O ex-guerrilheiro que chegou ao poder pelo voto, teve a sabedoria de conduzir com serenidade as grandes mudanças que o país tem atravessado, firmando-se como modelo de governante no mesmo nível de Gandhi ou Mandela. Preso e torturado por 14 anos pelos militares, abdicou da vingança a seus algozes em nome de construir uma nação pacífica com instituições sólidas. Um homem único, um humanista, que abriu mão voluntariamente da fortuna e do prestígio que o cargo poderia lhe proporcionar para continuar vivendo humildemente no subúrbio de Montevidéu com seu fusca, seus vira-latas e sem celular. Este é o outsider que importa.
Hoje, gravemente enfermo, com 89 anos, teve a felicidade (talvez a última de sua existência exemplar) de entregar esse pequeno grande país para seu discípulo Orsi continuar sua obra de, sem alardes, fazer do Uruguai um exemplo para a América Latina e para o mundo.