Caminhos de volta: Entre a cidade e o passado (Crônica 3)

Era sexta-feira à noite, e eu sabia que teria o sábado de folga. Mais do que isso, eu não tinha aula nas sextas-feiras da faculdade.. E, sempre que consigo folgar no final de semana, é quase uma regra: tenho que ir para minha cidade natal. Fica a uns 30 minutos daqui, e lá, fico alojada na casa da minha avó. Desde que me mudei para Assis, são raros os finais de semana em que consigo visitá-la. E, quando consigo, fico contando as horas até o momento de voltar para Palmital, para tomar o café dela às 7 da manhã, ouvir os causos que ela vê na TV, medir a glicemia dela e fazer pão. Mas, além disso, adoro apreciar o que minha cidade tem de mais bonito: as paisagens, as áreas ao redor do Centro Cultural, e, claro, andar de bicicleta pelo cidade toda.

Porém, o que mais gosto mesmo é ir à casa da Tia Cida. Lá, me reúno com as irmãs da minha avó, e a gente passa horas falando besteira, eu fazendo perguntas sobre o passado delas, arrancando boas histórias, aquelas que só as mulheres mais velhas sabem contar(e como sabem).

Eu estava saindo do trabalho, correndo para a rodoviária, tentando pegar o ônibus das 18h15. O tempo estava nublado, e, ao olhar o clima no celular, vi que a previsão indicava chuva na região. Chamei um aplicativo e consegui chegar a tempo. O ônibus já estava quase saindo quando entrei, totalmente ofegante e um pouco suada. Cumprimentei o motorista, passei pela catraca e me acomodei no banco ao lado da janela. Assim que me sentei, senti que todo o peso da rotina se dissipava. A faculdade, o serviço, o barulho constante do telefone tocando, a pressão da rotina… tudo isso ficou para trás. Coloquei os fones de ouvido, dei play em San Lorenzo, do Boogarins, e me entreguei à paisagem do interior, que se desdobrava pela janela, com as estrelas mais brilhantes acompanhando a estrada.

Ao chegar na cidade por volta das 19h20. O cheiro de chuva no ar foi imediato. A chuva sempre teve esse poder de me acalmar, de me alegrar de uma forma que eu não sei explicar. É como se eu fosse capaz de construir uma casa na chuva, de tão acolhedora que ela me parecia.

Desci na rodoviária e, no exato momento em que pus os pés no chão, começou a chover. Guardei meus fones e celular e segui em direção à casa da minha avó, aproveitando cada gota que caía sobre meu rosto, sentindo aquela sensação de pertencimento. Ao passar por um ponto de ônibus, algo me arrepiou. Foi como se eu tivesse sido transportada de volta ao passado, e, de repente, o frio na barriga tomou conta de mim. Tudo passou rapidamente, como um flash, mas o sentimento era tão intenso que parecia ter durado uma eternidade.

E lá estava eu, mergulhada em mais um daqueles lapsos do tempo.

Voltei a 2004. Meus pais ainda estavam juntos naquela época. Morávamos no Montreal, na qual meus avós paternos ajudaram meu pai a erguer, para que pudéssemos nos mudar, ainda com as paredes de cimento e os cômodos ainda sem acabamento. Minha mãe não trabalhava fora; cuidava da casa e de mim. Meu pai, com sua rotina de soldador em uma usina, enfrentava horários bagunçados por causa das escalas malucas de safra e colheita... Certa noite, meu pai havia chegado do bar, cansado, e se dirigiu diretamente à cozinha, onde minha mãe acabara de fazer uma macarronada. Preparou seu prato generoso e se sentou à mesa. Começou a soltar palavras que, com o tempo, se apagaram da minha memória. Mas, naquela época, mesmo pequena, eu era atenta a tudo que acontecia ao meu redor, principalmente às coisas que envolviam eles dois, por conta de outras experiências das quais tive. E meu instinto não falhou. Aos poucos, percebi que a conversa estava se tornando mais tensa, e meu pai, alterado após tomar muitas no bar, não conseguiu se controlar. Levantou o prato cheio de macarrão e, com raiva, o atirou contra a parede. O molho manchou a parede, e a marca ficou lá por anos, quase como uma lembrança daquilo tudo.

A discussão se intensificou, e minha mãe, desesperada, ameaçou pegar as chaves e me levar para a casa de meu avô. Foi aí que as coisas realmente saíram de controle. Lembro-me de ver meu pai partindo para cima dela, com a intenção de agredi-la, e, em um impulso, corri até ele. Subi nas costas dele através do sofá, ainda tentando impedir o que parecia ser uma cena que eu não queria ver. Não sei como, mas consegui fazer ele parar, mesmo que por um momento.

A última coisa que lembro é de estar, no colo da minha mãe abraçando-a bem forte no pescoço com um cobertor me cobrindo para não tomar o sereno da chuva, ela caminhando até a casa do meu avô materno, com o barulho da tempestade abafando o que ainda ecoava dentro de mim... Ao chegar no meu avô, ela me deixou na área, que ficava bem em frente a sala dele, para assim ela conversar com ele e ele poder deixar a gente dormir lá naquela noite... Não lembro exatamente o que foi dito na conversa, mas lembro claramente que meu avô deu um tapa na cara da minha mãe, e eu me assustei profundamente com aquilo. Depois disso, ele permitiu que nós duas passássemos a noite lá, na casa dele até tudo se acalmar....

Em certa época da minha infância, as noites eram sempre carregadas de ansiedade e atenção, como um instinto de sobrevivência aguçado. Havia uma sensação constante de que algo ruim estava prestes a acontecer, e eu sentia que precisava me preparar para aquilo.

E foi aí que o instinto do medo se aguçou de forma intensa, como se a qualquer momento eu estivesse prestes a me encontrar em situações de perigo constante.

Voltei ao meu estado normal e senti uma gratidão silenciosa por estar de volta à minha realidade atual. Agora, sou a Ana, com 25 anos, com a liberdade que conquistei, mas também com uma habilidade que aprendi a cultivar ao longo do tempo: a de superar os desafios sem me deixar consumir por eles. Não estou aqui romantizando a situação, longe disso... Apenas entendo que cada pessoa tem suas individualidades, suas criações, suas vivências e, principalmente, suas próprias formas de se reconstruir...

Quando cheguei na casa da minha avó, chamei ela pelo portão. Ela abriu a porta com um sorriso e os olhos fechados e, com aquele sorriso no rosto, me disse: 'Chegou meu ouro puro!' Abracei-a forte, dei um beijo na sua bochecha fofinha e, sem perder tempo, me encaminhei direto para a cozinha, atraída pelo cheiro delicioso de carne de porco que estava invadindo toda a casa.

Anna Gonçalves
Enviado por Anna Gonçalves em 26/11/2024
Reeditado em 26/11/2024
Código do texto: T8206242
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