o tempo que me é dado viver
Hoje, estou a menos de dois meses de meu aniversário de 65 anos. Tenho sentimentos contraditórios sobre este fato!
Sei que estou envelhecendo e existem muitos sinais de que a ‘idade chegou’. Nunca tive cabelo comprido ou em grande quantidade, mas minha esposa me lembra que a cada dia eles estão diminuindo e o ralo no banheiro é testemunha deste fato. Minha barba grisalha e a ‘barriguinha de cerveja’ não nega...a juventude ficou lá atrás.
São tantos os ‘pequenos’ sinais que é melhor não continuar a lista e seguir em frente.
Reconheço que o olhar sobre a passagem do tempo, do meu tempo de existência, foi como o de alguém que é pego de surpresa, mas não sabe se isso é bom ou ruim. Um desses momentos aconteceu em São Paulo, ainda nos anos 80 e, foi protagonizado por uma garota que trabalhava numa locadora de vídeos. Eu estava com 27 anos e ela me disse: ‘tio’ e continuou o atendimento. Pronto, virei a página, sou oficialmente um adulto e não há mais volta à juventude.
Guardo da juventude dois sentimentos: a) breve, curta e ao mesmo tempo intensa. Vivi a perda da fé e surpreendentemente, a reencontrei quando fui trabalhar com os mais pobres nas periferias das grandes cidades. O Cristo ‘pobre’ nos desafia a enfrentar a pobreza e a fazer o possível para mudar a realidade dos empobrecidos. Me engajei nas lutas por mudanças, questionei o que ainda existia de ditadura militar e de alienação. Me tornei militante e, admito hoje, também um pouco ‘militonto’. Não era fácil dialogar comigo estando ‘fora da bolha’.
Na juventude me apaixonei – lembrando uma cena do filme ‘O nome da rosa’ – pelo conhecimento e, fui muito feliz nos meus quase 20 anos de estudos universitários. Graduei em História, cursei todos os créditos de filosofia, fiz teologia e mais de um mestrado. Me sentia como alguém sedento à beira de uma cisterna. Isso explica porque me tornei professor, e também pesquisador de temas relacionados as práticas sociais e eclesiais abertas a processos de transformação. Eu bebia e ainda trago comigo a teologia da libertação, as comunidades eclesiais de base, os círculos e assessorias bíblicas do CEBI (Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos) e a militância no sindicato dos professores e no PT. Conheci nesta época pessoas extraordinárias e espero reencontrá-las na outra vida.
Entre os 30 e por volta dos 60 anos muita água passou embaixo da ponte. Me casei e vieram os filhos. No amor encontrei um ‘porto seguro’ e atraquei meu barco e desde então passei a viver com maior intensidade a ‘família’. Bons e muitos momentos foram vividos junto aos familiares – meus e de minha esposa -, bem como as perdas.
É comum no mundo dos ‘velhos’ que eles já tenham experimentado a dor de perder entes queridos, e comigo não foi diferente. Relembro saudoso situações vividas junto a meu pai, os pais de minha esposa, primos e primas, e vários amigos e amigas que já se foram. Sem idealização, posso dizer que cada um deles foi importante e permanece vivo em minhas lembranças. Sou um ser humano melhor e devo isso, em grande parte a eles.
Apesar de me pegar ocasionalmente dizendo: ‘antigamente isso era melhor’, ‘a gente tinha mais tempo’, ‘era diferente de agora’...clichês sempre utilizados por boa parte dos idosos. Penso e sinto que ontem como hoje a realidade não é nem melhor e nem pior, ela é diferente. Tão diferente que nós idosos temos dificuldade em absorver a ‘novidade’, seja ela na forma da tecnologia (celular, inteligência artificial e uma infinidade de bugigangas disponíveis nos sites de compras); seja com relação aos usos e costumes. Muitos de nós acabam por se tornarem conservadores e tradicionalistas. O medo não é boa companhia, cega, emburrece e pode nos fazer acreditar que só existe uma forma de ser feliz...aquela que queremos impor aos outros.
O encurtamento do tempo, também é um dos sentimentos mais presentes no envelhecimento.
É inegável que para o idoso o tempo está passando muito rápido: ‘puxa já estamos no final de 2024’; ‘parece que foi ontem’ que isso ou aquilo aconteceu. O passar do tempo se torna confuso, se um de nós sofre lapsos de memória. Nem sempre o idoso está em sintonia com o presente; sua fala e lembranças carregam memórias que misturam pessoas, acontecimentos ... e o idoso acaba por tornar-se repetitivo e anacrônico.
Brinco dizendo que ‘nosso prazo de validade está vencendo’, principalmente, quando aparece uma ‘dor ou doença’ nova em meio aquelas que me acompanham há muitos anos. Paulo Autran (um ator) dizia que um dia feliz para uma pessoa velha é, quando ele acorda com UMA única dor. Descubro em mim que ele estava absolutamente certo.
Iniciei essa ‘reflexão’ afirmando que meus sentimentos são contraditórios com relação a passagem do tempo porque: a) sinto-me abençoado por ter vivido até aqui e, pouca coisa se eu pudesse escolher agora, faria diferente; b) Em cada etapa/fase da vida, meu existir sempre esteve carregado de possibilidades, escolhas e caminhos; c) sigo em frente aberto ao tempo que me é dado viver e não estou sozinho nesta estrada.