Leitor clandestino - E por que a maioria dos brasileiros não lê
Na semana passada, uma notícia, que para mim parecia óbvia, assustou muita gente: perdemos quase sete milhões de leitores nos últimos quatro anos. Isso colocou a maior parte da população brasileira na condição de não-leitores. Essa constatação suscita muitas perguntas e reflexões, sem dúvida, mas não quero fazer isso aqui. Sou professor de Língua Portuguesa e Literatura há doze anos, e aspirante a escritor, o que, penso eu, me colocaria num lugar privilegiado pra falar sobre a prática da leitura em nosso país. Porém, antes de me tornar professor e de querer ser escritor, me tornei leitor (um dos títulos mais importantes da minha vida) e vocês talvez tenham lido a crônica em que contei essa história (A leitura contra a morte).
Ao chegar no Ensino Médio, no ano de 2003, voltei a estudar na mesma escola da minha infância, que era estadual. O início dos anos dois mil foi período de grande abandono dos prédios escolares públicos e isso era bem evidente onde eu estudava. Havia goteiras no telhado do pátio; nas salas de aula, sempre havia sujeira espalhada pelos próprios alunos mal-educados, e nem sempre havia profissionais de limpeza em número suficiente pra dar conta da bagunça; a ausência de latas de lixo era constante, as paredes sujas, carecendo de pintura, os armários sucateados e que não eram repostos, e por aí vai... A lista seria quilométrica, caso eu tentasse indicar todos os problemas.
Além desses problemas, a falta de professores era frequente. Muitos saiam de licença e não havia substitutos. Então, ficávamos a sós, com o tempo de aprendizagem sendo desperdiçado, ou sendo usado por alguns pra fazer bizarrices. Adolescente sozinho, com tempo ocioso, quase sempre dá ruim. Como eu não gostava dos meus colegas de sala naquele ano, ficava agoniado em permanecer naquele ambiente barulhento. Era uma tortura infinita aguardar a próxima aula em que teríamos a presença de um professor. Também havia um ou outro professor que não dava aula pra valer, apenas entrava e ficava ali sentado, sem propor nenhuma atividade e nem mesmo conversava com a turma.
A minha salvação foi quando descobri que, bem no meio do corredor onde ficavam as salas da administração da escola, havia uma pequena sala de livros desativada. A porta não ficava trancada e era fácil acessá-la, durante o horário de aula, sem ser visto por ninguém. Desse dia em diante, não houve mais tédio ou sofrimento pela falta de um professor ou pelas bizarrices dos meus colegas. Bastava que eu tivesse certeza da aula vaga ou que era o horário do professor "mudo", que eu fugia pra sala de livros, sentava no chão, bem escondido entre a última prateleira e uma pilha de livros largados e começava a folear os volumes. Me perdia entre tantas obras, de diversos autores, sobre vários temas, de países múltiplos. Me esquecia do tempo, que passava voando.
Foi na biblioteca esquecida que conheci, por exemplo, a série "Para gostar de ler" e li, pela primeira vez, crônicas de Drummond. Conheci Castro Alves e o seu "Navio Negreiro", que me assustou pelos horrores apresentados, mas também me encantou pela perfeição dos versos. Havia uma edição muito bonita “Espumas Flutuantes”, que consegui ler quase inteira ali mesmo. Também foi na sala-depósito que encontrei uma edição de Moby Dick e me extasiei com os capítulos iniciais tão bem escritos por Herman Melville (até hoje não terminei essa leitura, mesmo tendo uma belíssima edição em minha estante). Lá também tive meu primeiro contato com a prosa do Romantismo ao ler “Amor de perdição”, de Camilo Castelo Branco, e percebi a importância de uma boa narrativa quando se pretende prender o leitor.
Foram tantas as obras que encontrei ali, largadas, que não consigo me recordar de todas. Lembro que, com muita audácia, eu escolhia um livro e o carregava comigo por todo canto, devolvendo-o ao concluir a leitura. Cheguei a começar a organizar os livros do chão nas prateleiras vazias, mas não consegui concluir o trabalho. Passei todo aquele ano frequentando clandestinamente aquela minibiblioteca abandonada e nunca fui capturado ou descoberto. Sem dúvida alguma, essa atividade transgressora foi fundamental pra que eu sobrevivesse àquele ano terrível de abandono escolar. Muito do leitor que sou hoje devo a esse período criminoso. Talvez, se fosse uma biblioteca organizada, com suas regras e prazos, eu não teria desfrutado tanto daqueles livros.
Apesar de haver um romantismo em torno dessa memória, esse fato serve para elucidar com propriedade a notícia desoladora que nos foi dada. A geração que hoje está entre os trinta e quarenta anos é oriunda de um período em que políticos e gestores abandonavam as escolas e largavam no chão os livros que eram comprados com recurso público. As salas de leitura dos colégios eram abandonadas, se tornando depósito de obras esquecidas. Como cobrar dessas pessoas, ainda mais em tempos de redes sociais e leituras rasas, que leiam livros? E mais, como esperar que essas mesmas pessoas sejam capazes de formar novos leitores e de criar filhos interessados por livros? Seria uma esperança ilusória e infantil.
O problema é grave e o poço é muito mais profundo. Bibliotecas públicas vêm sendo fechadas Brasil afora. Inúmeras livrarias também. Na região em que moro, por exemplo, são pouquíssimas as que se mantêm abertas, concentradas na maior cidade. Nos demais municípios, as livrarias que havia foram fechadas, ou pior, nunca tiveram uma livraria funcionando em seu território. É bem verdade que as lojas on-line têm nos salvado e facilitado o acesso de muita gente aos livros. Mas, ainda é pouco. São mais de cem milhões de brasileiros que não leem livros e isso requer um reposicionamento de toda a sociedade.
Nesse meu tempo de professor, tenho encontrado salas de leitura e até mesmo bibliotecas muito bem-cuidadas nas escolas por onde passei e isso me traz um alento sem tamanho. Há notícias esperançosas também, sobre os investimentos federais para compras de livros. Mas, apenas isso não basta. A nostalgia que a minha biblioteca clandestina me causa é a origem de um leitor que poderia não ter existido. Mas, que essas salas, bibliotecas e livrarias nunca deixem de existir! Pois é no livro que está a libertação da nossa visão de mundo; é nas páginas lidas que criamos um outro mundo possível; e é no mundo dos livros que começa a revolução interna de cada um dos futuros revolucionários de um país que ainda lê muito pouco.