Fugidinha no carnaval
Eles viveram juntos por quarenta anos. Não foram aqueles biscoitos formados por duas peças que se unem com geléia, feitos com massa de pão-de-ló e unidos com doce de leite, mas foram bem-casados. Digamos que se deram muito bem até metade da vida em conjunto. Ele trabalhava como ninguém e também levava a profissão com muito amor e carinho. Ele, um profissional da estofaria. Ela, professora de português. Os dois eram os melhores em suas atividades na pequena cidade em que viviam.
Ele caseiro: vinho ou cerveja só consumia em casa. Ela gostava de sair. Sempre com irmãos ou pais. Um sempre respeitava o outro.
Mas, sempre tem um “mas”. Lá pelos vinte anos de juras de amor eterno, sem grandes brigas, com muito diálogo, aconteceu algo inesperado. Em pleno carnaval, ela acorda às oito horas, olha para o lado e não o vê. Sai à procura na casa toda e não o encontra. As horas passam e nada do amor de sua vida retornar. Fica preocupada.
Quer ligar para ele, mas o mesmo não tem celular. Acho que nem existia à época. Não vai à casa da sogra porque sabe que ela o defenderá e inventará alguma desculpa para proteger o filho. A hora do almoço chega e ele não aparece. No final da tarde resolve ir ao ninho em que ele vivia antes de se casarem. Disfarça conversando amenidades e só depois de uns vinte minutos é que a irmã dele pergunta:
- Onde anda meu querido irmão?
Ela conta que desde a manhã desapareceu e até agora não voltou para casa.
A irmã tentou proteger o mano, mas ela não deixou.
- Não adianta defendê-lo. Tu és puxa-saco dele. Ele é um sem vergonha.
Ia falar mais algumas ofensas quando ele aparece belo e formoso. Nem tão belo, nem tão formoso, o encanto e brilho vinham de dentro: tinha um coração que valia um milhão.
Tentou se desculpar dizendo que havia encontrado uns amigos, tomara umas e outras e se perdeu no tempo.
- Umas e outras? Foram muitas, né? Como estava de mulher?
Seu vagabundo. Não te perdôo nunca pelo que me fizestes hoje.
Falou pelos cotovelos. Discursou de frente para trás e de trás para frente. A sogra e a cunhada tentavam acalmá-la, mas foi difícil.
A raiva era muito grande.
Passaram mais vinte anos convivendo juntos. Falei a palavra conviver, porque é o que faziam. Aceitaram o ocorrido para não atrapalhar tudo o que de belo curtiam. Viviam em comum no mesmo habitat.
Quando ele estava para deixar essa vida, ela beijou-lhe as faces e os lábios. Ele estava tão fraco que falava monossilabicamente.
- A go ra vens com bei jô. Pas sas te, me ta de da vi da sem me bei jar e per do ar. Nun ca fiz na da de ma is.
Ela, chorando, pediu perdão. Disse que foi egoísta, pois nesse tempo todo só pensou em si e esqueceu-se dele.
Quando ele fez menção de responder, deu o último suspiro e se foi.
Nunca esqueçamos que quem tem bom senso age com equilíbrio. O bem senso é como a agulha da balança que indica o ponto exato do equilíbrio. Ter bom senso significa ter um comportamento ponderado, na medida certa: tanto o exagero quanto a deficiência pecam por falta de equilíbrio. Isso vale em relação a si mesmo, como em relação aos outros também. A falta de equilíbrio, por deficiência ou por exagero, gera o radicalismo e o fanatismo: com eles nada se faz de bom.
Aroldo Arão de Medeiros
23/12/2011