Sobre flechas, lanças e zumbis negros

 

Hoje é o Dia da Consciência Negra, justo feriado nacional em que nossa pátria relembra nossa maior chaga, a escravidão dos negros sequestrados na África, e a luta destes pela liberdade nos quilombos na figura de Zumbi dos Palmares. Todavia, deixei pra falar hoje sobre os 180 anos do infame episódio gaúcho do Massacre de Porongos, completos no último dia 14 de novembro.

 

Comecemos, entretanto, por amenidades. Hoje é dia de Grêmio. Grêmio azul, branco e preto. O preto de Bombardão, que entoava com sua voz de barítono o nome do clube pelas ruas de Porto Alegre em tempos idos. O preto de Lupicínio Rodrigues, torcedor autor da canção que virou nosso hino, que em 27 de agosto tivemos os 50 anos de seu falecimento e em 16 de setembro os 110 anos de nascimento. O preto de Juarez Tanque, o Leão do Olímpico, centroavante goleador daquele time treinado por Foguinho, o dos treze títulos gaúchos em 14 anos, que comemorou seus 96 anos dia 20 de setembro. O preto de Everaldo, a eterna estrela dourada em nossa bandeira, cujo nascimento completou 80 anos dia 11 de setembro e a morte 50 em 27 de outubro, dia triste que, igualmente, foi o último em que vestiu as cores gremistas, defendendo-as em campo, em jogo amistoso. O preto do Massagista Banha, que há 60 anos completos dia 1º de julho entrava para o clube, tendo partido há 15 anos a serem marcados dia 17 de dezembro. E o preto de Tarciso Flecha Negra...

 

Tarciso, meu primeiro e ÚNICO ídolo no Grêmio, ídolo de infância, eis que os verdadeiros ídolos a gente os cultiva na infância. Nasceu num 15 de setembro, dia do aniversário do Grêmio. Era pra ser, era destino, tanto que foi o atleta que mais atuou defendendo o clube: 726 vezes em treze anos, sendo nosso segundo maior goleador, com 228 gols. Cresci e virei gremista vendo Tarciso, sonhando com Tarciso e querendo ser Tarciso, tanto que vestia a camisa 7 tricolor. Sim, nosso grande camisa 7, desculpe Renato, foi Tarciso, que voava como uma flecha negra quando lançado em profundidade pela ponta direita. Hoje, Tarciso é o mascote do Grêmio. Tarciso nos representa. Tive a grata oportunidade de o conhecer num churrasco do Consulado de Charqueadas durante uma edição do Rodeio de Charqueadas. Que ser humano gentil, educado e humilde, mas bah. Os verdadeiramente grandes são assim, generosos e acessíveis com a pessoas. E Tarciso foi muito, comigo e com meu pai. E Tarciso foi mais do que um jogador, pois entrou para a política e, ocupando mandatos eletivos, fez um trabalho reconhecido e, por isso, reeleito. Com Tarciso nunca entendi o motivo do racismo, assim como, no mesmo período, com a Coligay, jamais compreendi a homofobia.

 

E aqui chego no motivo inicicial da escrita desta crônica. A Traição de Porongos. O Massacre de Porongos. Depois dele, sempre estranho não ver todo o preto gaúcho vestido como um Lanceiro Negro no dia 20 de Setembro, em memória destes igualmente, como Zumbi dos Palmares, defensores da própria liberdade. Traídos pelos Farroupilhas, por David Canabarro, desarmados e deixados à mercê das tropas imperiais de Moringue no acampamento no Cerro dos Porongos, na atual Pinheiro Machado - aliás, qual o motivo de não haver um sítio histórico em sua memória por lá? Há 180 anos o infame 14 de novembro de 1844. Há controvérsia? Sim. Sempre há, sempre haverá. Contudo, os fortes e inegáveis indícios não permitem cessar seus gritos de denúncia através das décadas: MASSACRE! TRAIÇÃO! Vil, infame como muito bem escreveu sobre Juremir Machado da Silva em seu livro História regional da infâmia.

 

Hoje à noite, quando estarei na Arena assistindo Grêmio x Juventude, clássico gaúcho pelo o Brasileirão, lembrarei de todos esses gaúchos e brasileiros acima citados, eis que, jamais se enganem, nunca se trata apenas um jogo de futebol, mas sim de nossa formação cidadã, da visão de mundo e da consciência política oriunda do exemplo de nossos eternos ídolos. Obrigado por ter me ajudado a ser um ser humano melhor, Tarciso Flecha Negra. Salve Zumbi dos Palmares! Salve Lanceiros Negros!