O cachorro atravessou a rua
Ele estava parado, atento, olhava para um lado, para outro, indeciso. Naquele momento, seis horas da tarde, o trânsito era o que se pode chamar de uma loucura, insano, a conhecida “hora do rush”. Tráfego intenso no viaduto. Carros, ônibus, motocicletas, bicicletas e pedestres cruzavam as vias em todas as direções. A representação perfeita do caos. E o cachorro parado no viaduto, na calçada à direita. Sem dúvida, ele observava os deslocamentos, aguardava uma oportunidade, a hora certa de atravessar a pista sem ser atropelado.
Não era a hora certa, porque não existia hora certa. Não tinha faixa de pedestre — isso se fôssemos considerar cachorros como pedestres —, não tinha semáforos, luzes de advertência, nenhum aviso, como aqueles que recomendam aos motoristas que diminuam a velocidade para animais silvestres cruzarem a pista. Em cima, muito barulho, buzinas, freadas, tensão ao escurecer. Embaixo, muito lixo, remanescente de moradias de pessoas sem-teto expulsas semana passada do local. Voltariam na primeira ocasião. Destroços da decadência social e urbana: móveis danificados, colchões apodrecidos, pneus, plástico, placas de papelão, lonas furadas, restos de comida, pedaços de cobertores, trapos. E o cachorro.
O cachorro tinha dono ou era independente, descompromissado, autônomo? Ao resolver atravessar a rua, estava exercendo seu direito ao livre-arbítrio? De onde veio e para onde ia? Vai saber. Se quiséssemos classificá-lo em alguma categoria, bastava levantar nomes como “cachorro de rua”, “vira-lata”, “vagabundo” e tantos outros. Aquele cachorro não se enquadrava, parecia perplexo, hesitante, mas estudava a conjuntura, o contexto em que se daria a travessia. A não ser que já o tivessem advertido de que não se atravessa uma rua impunemente.
Se fosse para humanizar o animal, poderíamos dizer que ele estava angustiado. Seu comportamento e sua expressão corporal indicavam que queria atravessar a rua. Alguém o estaria perseguindo? Evitava algo? Embora fosse um cachorro, poderíamos afirmar que fugia de condições desfavoráveis, negativas, opressoras. Se pudesse, escolheria mudar de vida? Mudar de cidade? Ou só queria, de fato, atravessar a rua?
O trânsito estava difícil, senão alguém já teria parado para ajudá-lo na travessia. Estacionar onde? Sujeitar-se a uma multa, causar um acidente? Interromper o trânsito só iria piorar a aflição, aumentar o congestionamento. Ignorar a situação? Deixar o cachorro ser atropelado? Como ajudar? Dilemas das cidades feitas para carros. Atribulações e aflições cotidianas de habitantes espremidos entre muros e avenidas, entre códigos, sinais, símbolos e advertências óbvias: não mate, não morra. Somos pobres animais acuados pela selva urbana.
Havia um incômodo, talvez uma urgência. Nitidamente, ele precisava atravessar a rua. Estava inquieto, confuso. Corria, sim, risco de atropelamento. Aí, levantou-se, pronto para ir até o outro lado. Ousou enfrentar a velocidade, a tecnologia, o monstro, e iniciou a travessia. Chegaria lá? Afrontou buzinas, ofensas, gritos e foi. A velocidade da vida nem sempre nos permite conhecer os desfechos.