A CHAVE DA POESIA
"Ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo".
(DRUMMOND, Procura da Poesia, in: A Rosa do Povo)
Ler um poema de Carlos Drummond de Andrade é como entrar num território sagrado, onde as palavras assumem novos rostos, desejos e sentidos. Em seu poema “Procura da Poesia”, Drummond nos convida a “penetrar surdamente no reino das palavras” e a descobrir as camadas de significados que a linguagem figurada pode oferecer. Aqui, cada palavra se torna um portal, uma chave que abre o caminho para compreensões além do literal. Drummond sabe que o poema não é apenas um conjunto de versos, mas uma viagem silenciosa, onde as palavras revelam o que há de mais íntimo em nós. Veja,
"Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário".
Quando Drummond diz que devemos penetrar nesse reino “surdamente”, ele nos sugere que a poesia não se explica, mas se sente. A linguagem figurada, aqui, atua como um elo invisível que liga os versos às emoções, criando pontes entre o dizer e o silenciar. Entrar nesse reino não é um ato de ouvir apenas o que as palavras dizem, mas de mergulhar naquilo que elas insinuam. Ao falar dessa busca, Drummond não nos entrega o sentido da bandeja; ele nos chama a construir nosso próprio entendimento, pois a poesia é um convite à subjetividade. Veja,
"Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço".
No reino das palavras, a metáfora, a antítese e a aliteração são peças que se movem de maneira sutil. Cada palavra escolhida pelo poeta é uma revelação, uma tentativa de capturar o intangível. Drummond, ao escrever sobre essa procura da poesia, desafia o leitor a ver além das aparências e a se entregar à experiência de interpretação, onde o literal se dissolve e o sentido figurado se torna a verdadeira essência. É por meio dessa linguagem trabalhada que ele nos mostra como os poemas, assim como a vida, nem sempre são para serem completamente compreendidos, mas sentidos.
Ao sugerir ao poeta “Chega mais perto e contempla as palavras./Cada uma/tem mil faces secretas sob a face neutra”, Drummond revela o quanto a poesia deve ser vista como um território livre, cheia de faces. Os versos se tornam mais do que signos linguísticos; tornam-se partículas da nossa própria experiência, pedaços do nosso mundo interno. Ao pedir: "chega mais perto e contempla" o reino das palavras, o poeta mostra que cada palavra é contida de intuições e de sentidos múltiplos (as "mil faces"), e que esse é o verdadeiro poder da linguagem literária: nos mover, transformar e abrir novas possibilidades de ver e de sentir o mundo.
A linguagem figurada, então, serve como ferramenta que ultrapassa a comunicação literal. Drummond quer que o leitor perceba que as palavras têm vida própria, um espírito que nos fala silenciosamente. Quando ele pede que se abandone a visão mecânica das palavras, nos orientamos a explorar as entrelinhas, a ouvir a “música” contida em cada verso. Ler Drummond é convidado a interpretar, a construir nossos próprios caminhos dentro do poema, fazendo da leitura um ato de criação.
Assim, a riqueza de sentidos que a linguagem figurada oferece é o que torna a literatura um espaço de encontro. Mesmo quando um poema parece pessoal e intransponível, ele convida cada leitor a interpretá-lo, transformando-o num espaço de troca e partilha. Drummond sabe que o verdadeiro valor da poesia não está nas respostas que ela oferece, mas nas perguntas e sentimentos que ela desperta. Ao tocar nesse reino das palavras, deixamos de ser meros espectadores e nos tornamos parte da experiência poética.
No final, ler Drummond é considerar que a poesia, assim como a vida, não precisa ser decifrada totalmente para ter sentido. O sentido figurado, esse reino onde cada palavra ganha camadas e profundidade, é uma forma de explorar a beleza do desconhecido. E assim, somos todos convidados por Drummond a penetrar “surdamente” no poema e a fazer dessa jornada uma busca pessoal, onde cada palavra é um pedaço de silêncio que fala, de forma inconfundível, ao coração do leitor.
"Trouxeste a chave?"