A aranha de pano
Essa memória se depositou morta em mim até ontem, quando estou na rua e, por acaso , me deparo com uma aranha. Certamente não era a mesma, mas me serviu pra recobrar essa imagem de infância e escrever essa crônica.
Somos crianças.
Há um colchão estirado no chão e nós estamos nele.
Vejo uma aranha deslizar até a porta, ela anda num contorcionismo sedutor, como se seu corpo, suas patas, seu desconhecido, fossem um fogo tremulando em cada pequeno aproximar. Ela é tão grande que chego a pensar ser algum tipo de peça decorativa
Eu acordo primeiro. Acordo, vejo a cena, não alerto. Letárgico, explodo em observação. Inertes, meus dois irmãos dormem.
A aranha é grande, negra, um brilho incomum escorre nas bolotas dos seus olhos. Se aproxima devagar, como se contendo em si uma dança do ventre primitiva, estranha aos meus olhos, mas tão natural quanto uma cor que se mistura e se dissolve em hipnose.
Sinto vontade de perguntá-la como é ser uma aranha, perguntar se era venenosa ou se iria me matar e, se caso me matasse mesmo, como seria. Se eu ia sentir um veneno gelado e estranho caminhando nas minhas veias, se ia arder ou se, simplesmente, aquilo me paralisaria de tal modo, que estaria em poucos segundos como meus irmãos sonhantes.
Não perguntei nada disso, não saberia como fazê-lo. O branco dos azulejos lhe confere um contraste quase mítico, como se fosse o chão um tapete bordado e aquela figura alguma cena ancestral.
Vejo o que acho ser presas, consigo ver as patinhas e centenas de pelos brotando delas, a vejo caminhar com persistência até a beira da cama e eriçar seus pelos a cada novo estímulo.
Ainda entre-sonho e só de cueca, a figura de meu pai surge na porta.
Sem hesitar, ele derrama um pano vermelho sobre a pobrezinha, faz com que se envolva em véu e vermelhidão e continue sua dança agora com aquele céu-tecido-prisão, uma teia estrangeira.
Eu não sei de onde surgiu o martelo, a essa altura a aranha já fora engolida pela interrupção de seu caminho e se movimentava como se o pano e o seu próprio corpo fossem um.
Meus irmãos, agora acordados, não entendem o absurdo. Eu daria tudo pra ter em mim esse susto. Imagine acordar, as cores e a realidade ainda se firmando na retina, a sua primeira visão é a de um martelo erguido no alto, de um pedaço de pano vermelho se movendo sozinho. Pra eles, eu acho, aquilo se confundia com um resquício de sonho. E então veio a dureza. Ouvimos um som gelado, abafado e seco. O pano vermelho se desanimou.
Ouvimos silêncio.