O digitador
Acorda. Olhas as horas. Levanta-se. Vai ao banheiro. Ergue a tampa da privada com o pé esquerdo, apesar de ser deselegante, ele gosta. Pigarreia. Aciona a descarga. O som que advém do ato mecânico lhe agrada. Aperta o botão mágico novamente para novamente ouvir o barulho agradável. Pensa em ficar assim o dia todo, o dia inteiro, apertando e soltando o botão sonoro, mas quanto irá lhe custar o ato sinfônico? E ao planeta? E aos que ainda virão? Será, por acaso, acaso mais um inconsequente? Desiste. Tampa a tampa do vaso branco, desta vez com as mãos, com cuidado, sem alarde, sem pressa, pensando no preço da água, pensando nos que ainda virão. Vai ao espelho baforar e fazer caretas. Não nessa ordem necessariamente, mas inversamente. Um espelho pequeno, entretanto suficientemente grande para lhe enquadrar o rosto e lhe exibir imperfeições. Bafora e, em seguida, escreve, com o indicador direito em ar de esperança, a palavra primeira que lhe vem aos olhos. "NATASHA". Escreve, mas logo apaga. Acha Natasha um nome horrível para ser inscrito em espelho. Natasha não combina com espelho. É um nome bonito de mais. Natasha combina com outdoor, que outdoor vende mais. Olha o vidro embaçado, imagina Natasha, escreve "outdoor". Sorri. Abandona a sala minúscula. Dirige-se à cozinha densa. Tomar café. Pão com ovo ou mortadela? Se de acordo com a orientação médica, preferiria chá. Mas, de acordo com a mesma prescrição, chá engorda. Como proceder, portanto, para não engordar? A dúvida o leva ao sofá. Deita-se. Parece confortável, o sofá. O digitador, nem tanto. Parece estar alhures, que é o mesmo que dizer que o digitador não está. Quem olha e ver o digitador digitar, pensa que o digitador está. Mas o digitador não está. É engano, e uma péssima rima, acreditar que o digitador está. Porque o digitador não está. Podemos vê-lo lá, deitado, digitando, com os batimentos em dia, a pulsação regular, os olhos abertos e pensar que ele está. Mas basta olhar-se ao espelho, baforar e escrever "outdoor" para se ter certeza que não se está. Estão o forro branco, o ventilador incrivelmente silencioso, as buzinas automobilísticas, o sol em seu calor padrão e até mesmo Natasha forever. As mesmas coisas de sempre, com apenas uma exceção, que subsiste entre a segunda e a terceira tecla, na rua por onde Natasha nunca caminhou.