OS VELHOS GAUCHO NÃO CHORAVAM..

Tive a felicidade de, na minha infância, conviver com os homens do campo- os gaúchos verdadeiros.

Patrões de Estâncias, Capatazes, peões de campo, alambradores, cordoeiros, domadores de potros xucros, peões caseiros e a lembranças que tenho, de todos eles, é a mesma.

Homens extremamente corajosos, destemidos e prontos para enfrentarem qualquer situação boa ou adversa que, para eles se apresentasse.

Uma característica marcante e comum a todos era a extrema seriedade com que se relacionavam com as pessoas próximas ou desconhecidas.

Reservados eram mestres na antiga ciência gaudéria de “guardar distância” para manterem o respeito próprio.

Senhores, absolutos, de suas emoções nunca demonstravam, em demasia, as alegrias ou tristezas das quais, certamente, eram acometidos.

Eu tinha e tenho para mim que os Gaúchos daquele tempo se eram felizes ou infelizes não o demonstravam e se choravam o faziam de maneira solitária de forma a que ninguém os visse.

Hoje, achei nos meus guardados esta relíquia de poesia do Firmino Paula de Carvalho- Desidério- que testemunha a minha impressão sobre as emoções dos velhos homens do Campo que povoaram a minha infância e que fizeram morada no meu coração e na minha história.

Nela o personagem, se emociona e chora, mas acha uma desculpa para justificar suas lágrimas...

Ofereço-a aos meus amigos, na certeza de que gostarão.

TESTAMENTO

(Firmino de Paula Carvalho)

Senta aqui, "China", ao meu lado;

assim...senta bem pertinho,

conversemos bem juntinhos,

como vivemos, querida,

sempre, sempre nesta vida,

lutando sempre sozinhos.

Atiça um pouco essas brasas,

que há um tição "fumacento"...

Sinto os olhos "lagrimejando"

e que a voz se me embaraça...

Mas, a causa é a fumaça

de algum pau verde chorando!

Encilha o mate, querida,

vamos tomando um amargo,

enquanto eu te dou o encargo

de uma última vontade;

confio em tua amizade,

que em nada porás embargo.

Não chore, prenda, tem calma!

É preciso ter paciência!

Tudo que tem existência,

um dia também tem fim!

Por que razão só de mim

se esquivará a Providência?

Presta bem tua atenção,

em tudo o que eu vou dizer:

- Sei que muito vais sofrer,

rolando cantos alheios,

Mas nunca tenhas receios,

em cumprir o teu dever.

Despreza a má companhia,

mesmo sendo ela um "bocó";

nem de todos tenhas dó,

que as penas não dão cuidados;

tem presente este ditado:

" Boi solto, lambe-se só".

Procura ser comedida,

dentro da própria desdita;

se te sentires aflita

contra qualquer falsidade

lembra que toda a verdade

nem sempre deve ser dita!

Para preservar a honra,

é preciso muito jeito,

pois tudo se leva a peito

em detrimento à virtude;

ao mérito não se alude,

quando se quer pôr defeito!

Evita sempre a justiça,

mesmo na causa mais nobre;

embora a razão te sobre,

resolve-te sempre só...

Como tento de cipó,

é sempre a razão do pobre!...

Vai aqui mais um pedido,

e que eu sei que hás de atender:

- Para mim será um prazer

ficar sempre onde vivi!

Foi no campo que eu nasci,

no campo quero morrer!

Não me "enterra" em campo-santo,

sob uma tumba ou jazigo;

não me pões nenhum abrigo,

enterra-me em campo aberto,

só pela terra coberto...

Que o gado durma comigo!...

Vende as pilchas que eu te deixo;

não tenhas nisso cuidado!

O meu apero prateado

que custou muito dinheiro,

até a guaiaca e o isqueiro,

te darão alguns trocados...

O tordilho "sobre-passo",

também o zaino-pinhão;

só não vende o alazão,

que é manso do teu andar,

vende as "garras de domar",

os peçuelos e o facão.

Vende tudo, minha prenda:

"Sovéu", o laço, "Arriador";

também vende o tirador,

estribos de picaria...

até para as "Três-Marias",

não faltará comprador.

Meu pala branco de seda;

cinchão, badana e carona,

vende o violão, a cordeona,

minhas botas de garrão,

"Rendilhas de redomão",

e aquele par de "choronas".

Só não vende aquele lenço,

que há muito eu tenho guardado!

O meu lenço colorado

que eu usei com tanto gosto...

Me tapa com ele o rosto,

pra ser comigo enterrado!

E este poncho de vicunha,

este velho poncho amigo,

que durma sempre contigo,

bem de encontro ao coração;

E, assim, terás a impressão...

que estás dormindo comigo!

FIRMINO PAULA DE CARVALHO
Enviado por ERNER MACHADO em 08/11/2024
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