Um Conto de Outra Ilha Desconhecida

José Saramago dizia em seu Conto da Ilha Desconhecida, que "é preciso sair da ilha para ver a ilha".

Vou te levar comigo em um dia da minha vida. Caminharemos pela trave de equilíbrio das calçadas e sairemos juntos de minha ilha Saramaguiana. De nossa horta vemos o centro da cidade, por dentro, o Juiz de Fora. Sempre penso como deve ser olhar para minha horta dos outros vinte e quatro apartamentos, e dos outros vários das ruas do centro. Metros quadrados meio apertados, mas bem ocupados com milho, pimenta, manjericão, orquídeas, íris, orapronobis, gengibre, hortelã, tomate, gerânio, antúrio, tostão, flor de outubro, arruda, e uma recém chegada nêspera. Minhas plantas são humanas, e cada uma tem sua Ana. Mas ainda estamos em uma selva de concreto, uma mata de carros e gente sem tempo, correndo e buzinando para o vento. Antes eu via a padaria mas a super-farmácia que vende batata chips e coca-cola tampou. Antes eu via as pessoas andando na rua mas os telhados tamparam. Em um prédio de quatro blocos de doze andares, morar no quarto é torcer para as construções não tamparem nosso Sol. Minhas janelas são voltadas para leste e oeste. O Sol nasce na cozinha e se põe na minha horta. Mas não vejo. O Sol nasce e dorme todo dia quase no mesmo lugar, mas a cidade não. Então hoje, cortando as folhas secas da pimenta cambucci, e fazendo um defumador de levandas colhidas no puro ar do Ibitipoca, onde o pôr do Sol ainda não morreu, decidi sair da ilha. Procurei um ângulo na cidade em que pudesse dar pé para ver nossa horta. Que não precisasse ser uma árvore alta, um pássaro, um objeto estranho, o meio da rua, ou de dentro da casa de alguém. Encontrei uma garagem, da rua sem saída ao lado da padaria que antes me via. Se eu andar pela sorte do aclive da rua sem saída, pela trave de equilíbrio da calçada, até a garagem alta do edifício que nos vê, encontrarei a saída da ilha. Escrevo neste tempo verbal, proponho um portal, pois estou prestes a descer, às 13:27, para almoçar na padaria, e sair de uma vista a outra.

Estou na padaria, prestes a entrar na rua sem saída, sentindo uma emoção sem tamanho. Se a garagem não fosse alta, se fosse mais para cima da rua ou mais para baixo, eu simplesmente poderia não encontrar a saída. Por isso estamos caminhando juntos nas traves de equilíbrio das calçadas. Todos os dias transitamos por ruas, calçadas, cruzamentos, pontes de cimento, desvios, atalhos. Somos muitos, destinos, emoções, motivos, mas somos poucos a caminhar sobre as traves de equilíbrio das calçadas. É de tomar um sentido diferente, uma emoção ímpar, o retorno das aventuras da infância, o fôlego das aventuras de adulto. Estou indo, sei que vou para a garagem de altura sortuda da rua sem saída do Centro de Juiz de Fora. Mas por ser um portal, não sei o que veremos depois. Devido à compra de um suco de laranja refrescante nas duas horas da tarde primaveril de outubro, o almoço atingiu os trinta reais necessários para uma Raspadinha de Prêmios de Natal. Viro a esquina para a garagem de altura sortuda, o coração bate forte diante do movimento de olhar para trás. Olhar para trás e ver o que trago nas costas, nossa horta, nosso metro quadrado verde em meio aos andares ocupados de outras formas, com outras cores, ou apenas por alugar. Recolho atrás de mim a síntese de meus vinte e quatro anos, um lugar dos mais recentes planos que fiz. Gosto muito do que vejo, sinto nosso trabalho cumprido, registro em fotografia o lugar que me foi casa, lar, onde recebemos amigos, famíla, onde sorri, chorei, fiquei sem respostas e encontrei melhores perguntas. Um lugar é como um corpo, feito de olhares. Na antropologia da vida e do afeto, é posicionalidade, simetria, perspectiva. Jamais fomos modernos, apenas deixamos de enxergar, paramos de seguir pela trave de equilíbrio das calçadas, rumo à garagem de altura sortuda das ruas sem saída no centro das cidades. Uma moradora do edifício chegou, e, diferente do Seu Zé, que acabou de me dar um caloroso “Boa Tarde” na portaria de onde moro, aqui na rua sem saída sou uma estranha, me comportando de forma estranha, fotografando sabe-se lá o quê: a rua? o poste? os fios? a super-farmácia que vende coca-cola? um carro? o prédio? o nada? Ela me olha estranho, por isso me acha estranha. Ela não está a procura da mesma ilha desconhecida que eu, por isso não vê. Sinto que ela espera me compreender antes de abrir a porta de vidro e me observa no reflexo, mas mesmo assim pergunto: “Esse prédio tem porteiro?”, “Não”. Eu queria levar uma muda de uma florzinha rosa diferente, localizada na entrada, e que talvez quisesse se ver de outro ângulo... Mas a moradora não poderia me ajudar, e disse que para pegar uma muda eu teria que ver com a síndica. Bom, a síndica não estava ali, não peguei a folha suculenta de florzinha rosa da rua sem saída. Mas fui embora pensando que se fosse eu no lugar da moradora, perguntaria o que eu estava procurando. Como quando eu parei abaixo da Igrejinha São Roque, olhando por um momento a cruz no alto que resiste ao tempo, e um senhor me perguntou com olhar leve e espirituoso, se eu estava vendo Jesus. Há pessoas de todas as idades caminhando nas traves de equilíbrio das calçadas. Quanto à flor, nós diríamos: “Claro! Leve uma folhinha, suculenta pega pela folha, não fará mal, nem fará falta pois são muitas! Flores gostam de saber que são belas, gostam de saber que são cheirosas, gostam de ser levadas por aí, para se verem de outros ângulos...” Segui meu rumo para casa, mas antes tentei a sorte na raspadinha, ali mesmo, na garagem de altura sortuda. Três imagens de pães foram o registro do prêmio. Retornei à padaria e o brinde do dia eram um salgado e um refresco. Enquanto escolhia uma coxinha de frango com catupiry e um outro suco de laranja da sorte, vi uma moça depositando um enorme saco pesado na porta do estabelecimento. Somos feitos da mesma horta, mas vemos a vida de vários ângulos. Ela ficaria ali, como muitos de nós, que de centavos em centavos junta o preço de um refresco. Agradeceu pela coxinha e o suco e seguimos nossos caminhos.

O sino da Igreja da Glória toca agora às 15:00, o Sol de outubro já está atrás dos edifícios, o pôr do Sol já morreu, já não há luz direta em nós. Sabemos que o Sol está ali, eu e as plantas, mas não mais para nós. Ficará em Ibitipoca por mais duas horas e meia, mas aqui no centro de Juiz de Fora não. Volto saltitante, dando vinte e quatro mil piruetas na trave de equilíbrio da calçada, e caio cravada como uma semente na terra, em nossa horta. Obrigada por ter nos feito companhia.