JOANINHA
Qual tamanho da força de quem sobrevive a fome e a seca?
“Quando ninguém mais lembra de você, a sua existência finda...”
Quando minha mãe foi ganhar minha irmã eu tive que ficar na casa da minha avó materna, ela morava na antiga Favela da Maré, um lugar aonde as tabuas rangiam com os passos de quem sobrevivia no Rio de Janeiro, e o cheiro da lama do mangue tomava conta de tudo. Eu tinha cinco anos e pela primeira vez vi a fúria das mulheres encarnada naquela potiguar que até aquele momento para mim era uma pessoa de certa forma estranha e de pouca intimidade apesar da proximidade de parentesco.
Era fim de tarde e eu estava em algum canto do barraco brincando sozinho, chegou um galego chamado Zé que era xodó da minha vó, hoje seria o equivalente ao “crush”, estava com a cara cheia de cachaça e queria bater nela, ele perdeu a viagem, tomou uma surra e saiu com o rabo entre as pernas, parecia que o barraco ia desabar, era um estalar de tábuas. Depois da briga eu fui parar embaixo de um baú, lembro dela me chamando; “menino... menino...”, ela nunca soube falar meu nome. Lembro que ela tinha um rosto duro, era branca e tinha uma fala estranha, nunca vi ela sorrindo, não devia ter muitos motivos para mostrar os dentes, a velha era “carne de pescoço”.
No meio dos anos 60 em Goianinha – RN, Zé Bala, meu avô abandonou a família com dois filhos pequenos; minha mãe e meu tio Arnaldo; e fugiu para Paraíba com outra rapariga. Foram tempos difíceis, minha avó até roubou um casal de perus da sua vizinha que era sua comadre, para dar de comer para os filhos, enterrou as penas e os ossos no terreno, a comadre as vezes perguntava: “Você viu meus perus comadre Joaninha?”. Meus bisavós maternos ajudaram eles da melhor maneira possível, mas ela não teve escolha e embarcou em um pau de arara rumo ao sul para o Rio de Janeiro.
Vó viveu mais de noventa anos, criou filhos, netos e bisnetos, e viveu para ver os filhos dos bisnetos...
Ela nunca esqueceu dos seus que sofriam no Nordeste, e sempre que podia viajar para o Rio Grande do Norte levando roupas usadas para as pessoas que viviam na roça.
Além de muita força de vida a mulher também tinha muito tesão, e aos 75 anos arrumou um cara de 45 anos e foram viver juntos, não deram certo, o cabra acho que não aguentou o rojão...
Minhas tias viajaram para Paraíba para conhecer o pai fujão, o velho tinha outra família tão grande quanto da minha avó, na volta trouxeram fotos, e Dona Joana finalmente pode ver quem era a rapariga com quem o pilantra tinha fugido, minha vó reconheceu a vadia, e disse: “ela era minha amiga...”
Não era só de homem que Dona Joana gostava, sua segunda preferencia era dinheiro. Quando já estava bem velhinha ela tinha uma venda em casa, certa vez sentada na porta de casa veio uma nota de 50 reais voando e parou bem na frente da sua casa, ela se levantou bem devagar e pegou a nota. Veio um cara na rua procurando, viu ela e perguntou: “vó a senhora não viu uma nota de 50 voando pro lado de cá?”
“Vi não meu filho, eu não enxergo mais direito...”
A última vez que vi Joaninha foi quando minha mãe morreu, ela não sabia quem eu era, e nem sabia meu nome, isso pouco importa. O que um moleque criado no Rio de Janeiro sabe sobre sofrimento, fome e seca? Só tenho uma pequena parte da sua força nordestina, isso é suficiente para lembrar dela, mesmo sem nunca ter agradecido por tudo que ela fez para ter sobrevivido...
Meu primeiro uniforme do Jardim de infância foi ela que fez, as letras do meu nome ficaram tortas no bordado, pelo menos a grafia ela não errou.