Não ao mindfulness, sim à louça na pia - sobre lavar a louça e praticar a Atenção Plena

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É preciso lavar a louça, sempre, todos os dias, em vários momentos. A bendita louça se amontoa na pia, caso você se dê ao luxo de descansar um pouquinho depois de comer ou beber algo; ou ainda, se teve de sair de casa às pressas, precisa lavar a louça depois. Parece que os utensílios de cozinha fazem parte de uma pirâmide criminosa, pois basta que um primeiro copo seja colocado ali para que, imediatamente, venham outros tantos e se somem, criando magicamente uma pilha monstruosa, feia e suja. Caso você seja dos mais ousados, vai deixar aquele monte ali por um tempo, sem sentir grandes incômodos; agora, se você for meticuloso, sistemático, aquela montanha vai parecer um cadáver no meio da sua sala do qual você precisa se livrar de qualquer forma, imediatamente.

É óbvio que eu odeio lavar a louça. Odeio com todas as minhas forças ou, como diz meu pai, "odeio de coração". Durante muito tempo, fugi desse ofício da mesma forma que o gato foge da água, e que o diabo foge da cruz (impossível não usar esse ditado). Mas, em dado momento da minha vida, não tive escolha. Não havia mamãe pra lavar, ou irmão a quem culpar pela pilha que crescia num piscar de olhos. Eram meus braços contra os copos, os garfos contra meus dedos, minhas mãos contra os pratos, e todos eles contra mim. Ou lavava, ou lavava, não havia outra opção. E foi lavando cada utensílio que aprendi porque se deve lavar bem toda a louça, quer ela seja um único prato, quer seja do tamanho de um caminhão de mudança. Primeiro porque, se não lavar logo, a coisa só vai piorar; segundo, lavar tudo é um exercício de atenção plena.

Na correria do dia a dia, temos de realizar inúmeras coisas ao mesmo tempo, o que acaba exigindo de nós uma fragmentação da atenção. Foi num momento muito tenso da minha vida que comecei a dar atenção para a Atenção. Alguns chamam essa prática de mindfulness, palavra que pra mim não tem importância. Nada contra as palavras da língua inglesa. É que parece mais um dos casos em que se apropriam de alguma prática ou conceito religioso, mascaram-no com um termo em inglês e o colocam como mercadoria em livros, palestras, consultórios e mentorias de coaches. Não foi através disso que tomei conhecimento da importância da Atenção Plena. Na verdade, foi no contato com textos budistas. Há muito tempo me interesso pela história de Siddharta Gautama, ou, como a maioria das pessoas o conhece, Buda. Comecei com a biografia dele e, aos poucos, fui conhecendo alguns dos elementos da filosofia de vida que ele criou, o Budismo. E isso me fez um bem danado. Por não ser uma religião teísta, me atraí muito por ela, em vários aspectos.

Não quero aqui falar de religião ou de qualquer prática espiritual. Quero falar é de lavar a louça. Como ela não some sozinha da pia, comecei a colocar em prática a Atenção Plena enquanto desenvolvia essa tarefa. Há um ditado budista mais ou menos assim: quando estiver comendo, apenas coma; quando estiver lendo, apenas leia. Não são exatamente essas palavras, mas o sentido é esse. Foi o que fiz. Comecei a apenas lavar a louça. E fui replicando isso em outras atividades. Com essa postura, as atividades mais simples, e até mesmo as mais irritantes e enfadonhas, acabam se tornando aquilo que realmente são: afazeres, tarefas, necessidades, e nada mais. Fazem parte da roda da vida e precisam ser feitas. Não há grandes ensinamentos, não há profundas reflexões, são apenas serviços diários que fazem parte da vida e que a tornam possível. São eles que nos conectam com o presente e, consequentemente, com aquilo que realmente existe: o aqui e o agora. É por isso que lavar a louça, metaforicamente, se torna algo tão importante. E, justamente por ser tão importante, é que manter a Atenção Plena naquilo que se faz se torna ainda mais desafiador. Eu tento, mas nem sempre consigo. Na verdade, quase sempre não consigo. Me esqueço disso durante um período, dias, semanas, meses; depois volto a tentar, ora conseguindo, ora não. Mas a louça sempre acaba sendo lavada, porque não quero me deixar vencer por ela.

Além de sair vencedor, a louça me ajuda a praticar a Atenção Plena. Em tempos de celulares e telas por todos os cantos e que nos oferecem imagens, vídeos e textos rápidos e superficiais, conseguir manter a atenção naquilo que se faz é extremamente desafiador. Temos de fazer um esforço hercúleo constantemente para não sucumbirmos à tentação de puxar o aparelho e deslizar o dedo na tela, nem que seja por alguns segundos. Hoje, lembrar da prática budista já é um grande desafio para mim. Colocá-la em prática então, nem se fala. Mas, sempre que me lembro, eu tento, e às vezes consigo. No fim, sei que preciso dar mais espaço e atenção à Atenção Plena e expandi-la para além da louça. Quem sabe assim eu consiga parafrasear um ditado popular sobre as tarefas domésticas: “Lavar louça todo dia, que alegria!”.

Thiago Sobral
Enviado por Thiago Sobral em 02/11/2024
Código do texto: T8188052
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