O gesto do pintor

Vejo um homem virado pra um muro, tem nas mãos um pincel que escorre tinta vermelha. O sol é uma lâmina quente, o sol é como uma tinta vermelha que escorre. Chego mais perto, vejo um letreiro se formando em mãos antigas, me diz que se chama Léo. Pergunto se faz aquilo já muito tempo. Desde criança. 15 anos, por aí. aprendeu com os primos, morreram todos. É droga, cachaça, cocaína, isso tudo levou, só sobrou eu. Me fala os detalhes das coisas, mas sem perder a precisão da curva, como se a fala, a pintura e o corpo fossem um só gesto. E esses desenhos aí, como é, o que botar você faz? Qualquer um. Só me mostrar no celular um igual e eu faço. Pode ser pequeno que eu faço do tamanho que for.

Observo ele trabalhar por alguns segundos, vejo os verbos se gravarem na tinta, falo que escrevo, ele fica surpreso e feliz, "um poeta, conheci um poeta" e então me despeço, vou até a parada de ônibus.

Quando eu acho que a conversa tinha secado, virado uma camada em milhões de outras imagens, o vejo se aproximar.

Falta muito ainda? - Pergunto.

Falta, depois daqui tem outro. Sou mais o mesmo não. Eu batia uma bolinha. - Ri - Agora o caba é só dar uma corrida que já fica todo - Imita um corpo sem ar.

O silêncio toma os olhos por alguns segundos, eu imagino que mesmo ele morresse, as paredes ainda teriam o seu vermelho e a memória do seu corpo preso nelas, mas não falo nada. Ele recomeça:

..Ontem tomei uma mais um caba, acordei. ressaca, mas eu vou parar.

Pois é, tem que parar

Meu pai dizia que se for pra viver, viva. Vida só é uma. Eu, antes de começar a trabalhar, já bebia. - Acha graça - Uns 13 anos. E tocava também.

E além de pintor, ainda é músico. Toca o que?

Cavaquinho...tudo. Mas era na farra, né

Muito bem.

Eu vi hoje uma notícia, diga aí, um bebê morreu, levou um tiro. - Ele me vem com essa informação que me fura como um susto, que me aparece como se fosse um som estridente, uma lixa nos olhos, e continua - Morreu sem nem nascer, como é que pode, você morrer sem nem nascer? Diga aí que história.

Eu lembro de "pneumotórax", uma vida inteira que poderia ter sido e não foi. Morrer antes de nascer, é como ser, pra sempre, uma ideia. Nada além disso.