Um tapa na cara da benevolência

Na esquina de casa tem uma padaria. Vive cheia de famílias, casais e amigos sentados nas mesinhas que ficam dispostas em L. Esquina é em L. L de esquina, a letra é auto-explicativa. O povo fica lá, bonito e letrado, com seus jornais, seus cachorros de marca civilizados, tomando sujo de laranja, pingado e comendo queijo quente, pão na chapa, tudo delícia. Os atendentes usam aqueles chapeizinhos marrons, já são da casa, conhecem os clientes. Tem o bigodudo que não sai de lá também. Deve ser português, o dono. Dá até pra pagar fiado, coisa rara no mundo de hoje, onde é necessário cadastro até pra fazer caridade.

Para contrastar um pouco com a alegria pura e simples do lugar, obviamente as crianças brancas e pretas, não importa, as crianças também estão lá com suas balinhas pra vender. Todos dizem que não têm nada pra dar. E saem, meio cabisbaixos, com suas sacolinhas cheias de pães.

Num desses dias maravilhosos que a graça de Deus mandou para o litoral 2 milhões de pessoas, estava eu lá na padoca, sentada numa das mesinhas pra comer um lanche (sem cachorro). Pra não ficar livre da culpa de ter o que comer, logo após pedir o churrasco com queijo, veio a criança:

- Tia, hfjskslsls.

- Que foi? Você quer um lanche?

- É. (Sem convicção). Minha mãe está do outro lado (da rua).

- Qual lanche você quer?

Silêncio.

- Menino, você veio pedir um lanche, eu estou perguntando qual você quer. Você quer qual lanche?

- É... mortadela com queijo.

- Moça, veja um lanche de mortadela com queijo e um refrigerante pro menino.

Fiquei meio desconfiada dele. Uma pessoa que está com fome não faz cara de paisagem quando você pergunta o que ela quer comer. Ainda por cima ele ficou parado do meu lado, como se me devesse alguma coisa, como se precisasse de alguma cerimônia de gratidão pelo lanche. Logo dei um jeito de falar pra ele buscar o pedido direto no balcão, assim ele sairia do meu lado. Além de estar comendo, não queria ficar naquela posição superior que as pessoas se colocam quando ajudam alguém. Estava tudo certo: ele pediu, eu dei. E pronto. Também não quis ficar olhando para o outro lado da rua, assim ele e a mãe não se sentiriam na obrigação de fazer algum gesto de agradecimento só porque eu estava olhando.

Mas quando atravessei a rua, não tive como não perceber o isopor onde a comida foi entregue e a lata de refrigerante jogados no chão, à exatos 1 metro de um lixo. Fui até a porta da minha casa, mas não resisti e voltei. Mãe e filho conversavam com uma senhora. Logo percebi que ela contava aquelas histórias tristes de família complicada do interior de algum lugar (onde todo mundo diz que é "primo"). Passei por ela e voltei ao lanche. Só tinha ele de lixo no chão. (Um parênteses aqui: eu tenho um grande, mas um enorme respeito pelos lixeiros). E o que é raro em São Paulo: HAVIA UMA LIXEIRA!

Mas o pior ainda está por vir. Fiquei um tempo na dúvida entre falar com a mulher e pegar eu mesma o lanche e jogá-lo no lixo. Ando meio cansada de gastar energia com as pessoas sem educação (e com as que não sabem fazer gentilezas também e com as que não são civilizadas, são tantas...). Decidi eu mesma jogar o lixo, pra poder dormir sem pensar naquele pedaço de mundo sujo que me dizia respeito.

Quando vou pegar o recipiente, um frio passou pela minha espinha. Metade do lanche estava lá, intacto. Joguei fora a lata vazia, o lanche, tudo. Fui pra casa com o juramento de ser fria e cruel pra sempre. Só compro bala se estiver com vontade de comer, só faço doações pra quem conheço e sei que não vai deixar a minha boa vontade pela metade, largada no chão pra alguém tropeçar, ou se dignar a jogar fora.

Paula Corrêa
Enviado por Paula Corrêa em 15/01/2008
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