Uma lembrança
Eis duas desinteressantes revelações a respeito de boas notícias: uma é que elas quase não existem; a outra, e mais otimista, é que, quando existem, demoram muito até chegar a nós. As más, no entanto, como diz o senso comum, correm veloz. Souza morreu e, em menos de 24h, eu já estava sabendo do infortúnio.
Quem é Souza do verbo ser, quem foi Souza do verbo haver, Souza com "S" ou Souza com "Z"? Pouca gente sabe, inclusive eu, mas quase todos os frequentados do balcão do Souza (talvez Souza com Z) sabemos: Souza morreu. A notícia chegou muito depressa para nós, os frequentadores do balcão do Souza, que a esperávamos só daqui a uns duzentos anos. Ao falar "balcão do Souza", presto-lhe uma espécie de tributo, uma vez que sabemos perfeitamente que o balcão não era nem é do Souza, mas sim o local onde, por décadas, prestou seus excelentes serviços. Era mais um trabalhador de balcão e, sobretudo por isso mesmo, deixará saudades.
Não cheguei a conhecer Souza paisano. Geralmente o via em seu jaleco branco, botas brancas, com a faca na mão, concentradíssimo em seu labor, cortando charque. Ou então em direção ao banheiro, caminhando depressa, eu sentado, no primeiro andar do Globo, geralmente aos sábados, geralmente tomando cerveja, geralmente sem nada por fazer, mas o mundo lá fora, girando, produzindo, apressadíssimo. Confesso que sentia um pouco de culpa: Souza ali, trabalhando ferozmente, em pleno sábado, faltando-lhe tempo sequer para ir ao banheiro descentemente; e eu, embora ao seu lado, muito distante, apenas o observado comum, sem lhe prestar qualquer homenagem.
Não só o via aos sábados, porém. Ás vezes acontecia às sextas-feiras, à noite, às 9h, ele descendo à ladeira do supermercado onde quase morava, em direção ao seu lar oficial, cuja localização não sabemos onde fica, mas certamente é depois da esquina da KI Amore, pois Souza sempre dobrava nessa esquina, e então só o víamos no dia seguinte.
Para mim, sua aparição funcionava como uma espécie de relógio. Muito pontual, o Souza. Eu costumava ficar sentado na calçada da atual calçada das Lojas Bahia, vendo jogo de futsal na quadra de esportes em frente, eis que de repente lá vinha o Souza, em sua Monark azul, veloz, em direção à esquina da Ki Amore. Nem era preciso consultar o celular para saber que eram exatamente 9 horas.
Nunca o vi paisano, de havaianas, bermuda, senão no traje oficial, quando largava do ofício, em direção a algum lugar, para no dia seguinte, pontualmente, apresentar-se novamente, logo cedo, e recomeçar a rotina estafante. Julgo ser sua rotina estafante à que Souza se submetia diariamente, porém, não sei dizer se ele concorda. Trabalhava tão ereto, tão disposto, tão simpático que talvez até lhe agradasse o trabalho.
Souza, o simpático cortador de charque, morreu. Fica sua lembrança. Ficam-me também muitas perguntas sem resposta: qual sua idade, seu nome completo, seu livro ou filme preferido, seu signo astral e outras particularidades interessantes sobre Souza. Sei, no entanto, que Souza morreu, deixando o seu balcão, infelizmente vivíssimo, ocupado agora por mais um Souza. Talvez não tão simpático, pontual, otimista quanto o Souza oficial. Talvez um Sousa com "S" de Silva e, portanto, para o mundo, invisível.