INTEXTUALIDADE: DO CLÁSSICO AO CONTEMPORÂNEO

 

Eu estava escutando uma canção da banda gaúcha Engenheiros do Hawaii. A música era Dom Quixote e ela parecia sussurrar ao meu ouvido como um velho amigo que resgatava histórias esquecidas, e, de repente, me vi de voltas às aulas de literatura, onde Dom Quixote, o cavaleiro errante, cavalgava entre moinhos de vento que imaginava serem dragões. O impacto da obra de Cervantes ecoa até hoje, seja nos livros, na música ou nas artes visuais, provando que as grandes narrativas nunca morrem. Elas se reinventam, mudam de forma, e ganham novos significados, como quando se traduzem em música. A intertextualidade é isso: uma ponte de épocas, um diálogo entre obras que atravessa o tempo. Veja,

 

"Muito prazer, meu nome é otário

Vindo de outros tempos, mas sempre no horário

[...]

Por amor às causas perdidas

Tudo bem, até pode ser

Que os dragões sejam moinhos de vento

Tudo bem, seja o que for

Seja por amor às causas perdidas

Por amor às causas perdidas"

 

Na letra da música, Humberto Gessinger invoca o quixotesco ao falar do “amor às causas perdidas”. Há um tom nostálgico e, ao mesmo tempo, de resignação, uma ironia que nos faz pensar no quanto ainda somos capazes de lutar por ideais que parecem impossíveis. E quem, afinal, não tem suas causas perdidas? Nesse sentido, a intertextualidade entre a música e a literatura é poderosa, pois nos aproxima das figuras literárias e das suas loucuras heroicas, tornando-as espelhos para os desafios modernos. Somos nós os novos Dom Quixotes, em batalhas que podem ser contra "moinhos de vento", mas são as nossas.

 

A ideia de moinhos que parecem dragões vai além de Cervantes. Ela se apresenta de outras formas, como os super-heróis das histórias em quadrinhos ou os personagens dos filmes que tomam para si a tarefa de salvar o mundo. Nos momentos mais tensos, vemos ali o mesmo questionamento: esses inimigos são reais, ou são projeções de um idealismo próprio? A literatura nos deu Dom Quixote para lembrar que as batalhas podem ser tão imaginárias quanto reais, e as artes contemporâneas continuam a explorar essa linha tênue entre o real e o imaginário.

 

De alguma forma, todos nós queremos ser Dom Quixote e Sancho Pança, idealistas e céticos, lutadores e observadores. A intertextualidade entre esses arquétipos literários e suas adaptações contemporâneas cria uma rede de significados que enriquece a compreensão humana. Como no cinema, onde tantas histórias resgatam o arquétipo do herói solitário, misturando-o traços de humor e tragicidade. Nesse sentido, quando Gessinger canta "Muito prazer, meu nome é otário", ele assume a persona do cavaleiro errante, disposto a ser o tolo que ousa acreditar no impossível.

 

Essa tendência de releitura se espalha também nas artes visuais. Picasso revisitou As Meninas de Velázquez, trazendo uma perspectiva cubista e explorando a estrutura e o significado da pintura original. É como se Picasso dissesse: "Veja, também eu enxergo esses moinhos e dragões, mas agora sob uma nova ótica". A intertextualidade aqui é o exercício constante de dar nova vida às ideias, de oferecer outros olhares sobre os mesmos temas, e, assim, cada geração construída um novo sentido.

 

No fundo, talvez seja isso que a intertextualidade realmente significa: a possibilidade de viver várias vidas em uma só, de vivenciar histórias de tempos diferentes e universos paralelos. Quando lemos Cervantes, escutamos Engenheiros do Havaí ou assistimos a uma adaptação moderna de Dom Quixote , nos tornamos um pouco cada um desses personagens, assumindo o idealismo do cavaleiro errante, a paciência de Sancho e a inteligência cética de Cervantes. E como eles, navegamos entre sonho e realidade, questionando o que vale a pena enfrentar e onde devemos traçar a linha.

 

Assim, os grandes personagens da literatura e da arte tornam-se nossos aliados invisíveis, inspirando-nos com suas causas perdidas e batalhas imaginárias. E, afinal, o que seria do mundo sem as causas perdidas? Talvez só fique vazio. Por isso, enquanto existirem quem sonhe em domar dragões, mesmo que sejam apenas moinhos, a literatura e a arte continuem vivas, ecoando nos ventos do tempo e nos sussurrando: "Por amor, sempre por amor às causas perdidas."

Prof Eduardo Nagai
Enviado por Prof Eduardo Nagai em 25/10/2024
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