Entre vista do Bananal ao Magalhães

Ele nasceu no Bananal e aos vinte anos foi morar no Magalhães.

Bananal é um distrito e Magalhães um bairro de Laguna.

Digamos que o primeiro é um sítio e o outro, segundo os moradores mais antigos, o “Bairro Chique da Cidade”.

Entrevistei-o, ou seria conversei com ele, numa das idas à “terra de Anita Garibaldi”. Ele gosta muito de contar que caminhou 120 quilômetros quando servia o Exército, num feriadão de Páscoa, para ver a namorada. Em estradas de chão batido onde dificilmente passava carro ou caminhão. Parece mentira de escritor, mas isso ocorreu lá pelos idos dos anos 40.

Trabalhou na construção da primeira ponte sobre o Canal das Laranjeiras, na Lagoa Santo Antônio dos Anjos, picando pedra. Hoje, beirando os noventa, confessou-me que gostaria de trabalhar na nova e gigantesca obra. Essa construção terá quase três quilômetros de extensão e dois mastros com mais de 60 metros de altura. Para equilíbrio das estruturas, serão usados 28 cabos de aço inoxidáveis em cada mastro. Tudo isso ele recorda com lágrimas nos olhos, pois viu surgir a primeira ponte e, fosse da casa da namorada ou da sua, apreciava os veículos passando sobre a ponte. A namorada tornou-se esposa e conviveram juntos até ele ficar viúvo. Tiveram oito filhos, um deles falecido com apenas trinta e três anos. Tem dezessete ou dezenove netos. Essa conta incerta deve-se ao fato de dois deles serem postiços. Bisnetos, por enquanto, estão na mesma quantidade que ele teve de filhos, oito. Ele é um exemplo de bondade e honestidade. Sempre calmo.

Falou-me que certa vez perdeu as estribeiras com um colega da banda onde tocava. O sujeito não pagou o valor a que ele teria direito por ter feito vibrar seu instrumento por três noites de carnaval em um clube. Ele, raivoso, desferiu-lhe um impropério, que não sabia se poderia publicar aqui. Mas, com a autorização que solicitei e me foi concedida, lá vai: “Tu só serves para fritar bolinho”.

A vida com a esposa foi um modelo. Pelo que me contou, só tiveram uma discussão que, baseando-se nos dias de hoje, não foi nada. Se a morte é descanso, ele teima em não querer descansar.

Prestes a completar noventa anos, caminha diariamente. Dá hóstia aos enfermos, em suas casas. Cobra o dízimo na sua rua.

Varre a calçada em frente de casa. Faz tantas coisas que a maioria dos jovens não faz. Viaja pelo menos duas vezes por ano. Não é viagenzinha. É passeio de transatlântico, cruzeiro por esses mares afora. Passeou na Europa. Se alguém da família se esquece de convidá-lo para fazer uma viagem, ele se convida. E se for de ônibus, senta na primeira poltrona para apreciar tudo e chegar primeiro.

Ele pouco sorri. Entretanto muitas situações o emocionam e ele derruba lágrimas, disfarçadamente. Só uma vez aconteceu algo que mesmo ele, sisudo, riu bastante. Ele e seu irmão gêmeo, Abraão, trabalharam, desde moços até a aposentadoria, nos portos de suas cidades, como conferentes de cargas. Fiscalizavam o embarque e o desembarque de tudo que os navios levavam ou traziam. E foi num navio que aconteceu um fato inacreditável, em consequência da semelhança entre os dois. O navio Orleans atracou no porto de Laguna, oriundo de Imbituba. Arão e os amigos conferentes, o João Dezoito, o Osvaldo Pua, o Orlando Guasca, estavam no cais no exato instante em que o navio atracou. Arão falou aos amigos:

- Estou achando que o Abrahão veio neste navio. Vamos ver?

- É possível, respondeu João Dezoito, enquanto abaixavam-se para observar pela vigia do navio.

Arão, espreitando pelo orifício, enxergou o irmão e acenou. E disse aos amigos:

- Tinha certeza que ele viria. Coração de irmão não se engana, comentou envaidecido.

João Dezoito abaixou-se novamente e, espiando também pela vigia, falou com ar de dúvida:

- Arão, acho que não é o seu irmão, porque eu também estou me vendo lá do outro lado...

A abertura circular fechada com uma tampa de vidro grosso ficava bem em frente a um enorme espelho. Arão vira a si mesmo e se confundira com o irmão. Foi difícil estancar as gargalhadas dos conferentes, que ainda ririam por muitos dias a cada vez que se lembravam da cena.

Os vizinhos o admiram. Todo final de ano arrecada dinheiro com eles para comprar tinta branca, contratar um pintor para colorir o meio fio e tirar o excesso de areia que ali se acumula.

Dentre os sobrinhos é o tio mais procurado. Nessa conversa franca que tive com ele, descobri que foi o único que apoiou uma cunhada quando ela atravessou tempos difíceis.

Logo que chegou à cidade entrou numa banda e aprendeu a tocar pistom. Fazia soar o instrumento nas festas religiosas e nos bailes carnavalescos. Foi músico durante cinquenta anos. Nessa época, quando alguém chegava a sua casa e ele não se encontrava, já sabia: estava no porto, na igreja ou na banda. Não aceita que políticos prometam algo para ele e não o cumpram.

Chega até a fazer campanha contra o mesmo. Ele terminou o segundo grau aos quarenta anos porque no sítio o ensinamento só ia até o quarto ano primário. Parece que prometeu a si mesmo e conseguiu que seis de seus oito filhos tivessem curso superior.

A paisagem vista da prainha do Bananal é linda assim como o pôr do sol na Lagoa de Santo Antônio no centro de Laguna, antes de chegar a sua residência no Magalhães. Se um livro fosse escrito sobre sua vida que título teria? Viajante contumaz; Vizinho especial; Orgulho da família; Família, banda e igreja; Homem de palavra.

Deu aos filhos tudo o que conseguiu. Conheci o Arão desde que me dei como gente e ele me conheceu desde que nasci, pois sou, com muito orgulho, seu filho.

Aroldo Arão de Medeiros

22/09/2014

AROLDO A MEDEIROS
Enviado por AROLDO A MEDEIROS em 25/10/2024
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