O (custoso) milagre da multiplicação dos joelhos de porco
"O Criador, ao obrigar o homem a comer para viver, o instiga pelo apetite e o recompensa pelo prazer."
Jean Anthelme Brillat-Savarin
Domingo, 9 de junho. Avisos no final da missa.
- Pessoal, falta só um mês pra Festa das Nações! E, como acontece todo ano, a gente da Comunidade São Padre Pio ajuda nos preparativos do joelho de porco, da Barraca Alemã.
- E o primeiro serviço dessa edição vai ser sábado que vem! Precisamos de voluntários pra limpar os joelhos, temperar, cozinhar e assar. São quase 800! Provavelmente vâmo levar o dia inteiro pra dar conta de deixar tudo pronto pra congelar.
- E aí é aquela equação básica: quanto mais gente trabalhando, menor será o desgaste de cada um e mais rápido será finalizada a tarefa! Então, pra quem tiver disponibilidade e disposição, vai ser lá na cozinha do Salão Paroquial, a partir das 8:00. Tâmo contando com todos vocês!
Sabe quem tava disponível e disposto pra encarar a labuta?
A Edgláucia, o Dilson, o Ricardo e o Seu Julinho! Pois é!
- Não somos muitos, mas somos bastantes! Bora lá moer essa farinha!
- Seu Julinho! É a primeira vez do Ricardo! O senhor ensina ele, por favor!
- Ah, meu filho! Não tem segredo, não! Trouxe a gilete? Sabe que tem que ser daquelas de montar no aparelho, né? Porque essas descartáveis não valem nada, não aguentam o tranco de jeito nenhum!
- Opa, Seu Julinho! Tá na mão! O Dilson já tinha me avisado...
- Então, tá pronto pra começar! É como fazer a barba, meu filho! Vai raspando até ficar bem lisinho! Vai sentindo com a mão: quando não tiver mais nenhum atrito, tá limpo!
- E aí é só dar uma olhada aqui na lateral do joelho, onde termina a capa de gordura: sempre tem uns pelinhos nessa parte! Não pode deixar! De jeito nenhum!
- A gente sempre tem que ter em mente o momento em que o joelho vai estar sendo servido em cada mesa lá na festa! Não pode ficar um milímetro abaixo do impecável! E um pelinho, só um pelinho que tenha passado despercebido, já derruba o nosso padrão de qualidade...
- Sabe demais, Seu Julinho! Pode deixar que a gente vai fazer tudo e mais tudo pra esse sarrafo continuar lá no alto! Só vou pedir pro senhor dar uma conferida nos primeiros que a gente fizer...
- Então, meu povo! Declaro abertos os trabalhos de limpeza do joelho de porco desse ano! Vâmo fazer uma oração pedindo a Deus que nos abençoe, nos ilumine, nos oriente e nos proteja pra que possamos servir com dignidade e alegria...
E partiu trampo!
Até que no começo rendeu bem porque todo mundo tava focado só na limpeza dos joelhos, mas quando bateu uns 180 raspados, uma parte da turma assumiu a função de temperar, por pra cozinhar nas panelas e depois pra assar no forno.
E aí, mesmo com todo mundo no modo mil por cento de dedicação e esforço, parecia que a montanha de joelhos não baixava de jeito nenhum!
- Rapaz, parece até que tá é aumentando...
- Sabe que tô tendo essa mesma impressão?
- Gente, não é por nada, não! Mas quanto mais a gente tira da pilha, mais joelho aparece!
- Tão brotando! Só pode ser!
Aí o Seu Julinho cravou.
- É o milagre da multiplicação do joelho de porco!
- Que milagre mais custoso, hein Seu Julinho? Fala sério!
- É sempre assim, meu filho! Acontece todo ano! A gente começa e sempre parece que não vai conseguir chegar no fim, mas pode ficar todo mundo tranquilo que a gente sempre chega no último...
- É isso mesmo, pessoal! Falou a voz da sabedoria!
- E da experiência! Vâmo continuar pegando firme, um por um, até o último! Que vai ser do Seu Julinho, porque tem que respeitar a história dele!
- É verdade! Seu Julinho é o único da Padre Pio que nunca furou na limpeza do joelho de porco!
- É verdade mesmo, né? Tâmo aqui desde a estreia da Barraca Alemã na Festa das Nações! E pra mim não é obrigação, não! De jeito nenhum! Faço é por gosto mesmo! Mas tenho que confessar uma coisa pra vocês: quase não vim dessa vez!
- Eita, Seu Julinho? O que é que aconteceu?
- Olha, só vim mesmo pra não deixar vocês na mão!
- Ah, Seu Julinho! Agora o senhor deixou todo mundo na maior curiosidade! Conta logo o ocorrido que quase quebrou o seu cem por cento de presença na raspagem do joelho!
- Então, dessa vez passou muito, mas muito perto mesmo de eu falhar com vocês! Na verdade, nem sei como é que tô aqui agora...
Aí todo mundo parou o serviço, olhou pro Seu Julinho e cobrou ao mesmo tempo.
- O que é que aconteceu, Seu Julinho?
- Ah, eu caí do telhado agora cedo!
- Caiu do telhado, Seu Julinho? Como assim?
- E tá aqui, raspando joelho de porco?
- Não é possível que não tenha machucado nada!
- Deve ter alguma parte aí na maior dor, né Seu Julinho?
- Seu Julinho, o senhor caiu do telhado! Tem que ir pro hospital! Tem que fazer raio-x! Tem que fazer ultrassom! Tem que fazer tomografia!
- Pode ter quebrado algum osso, uma costela!
- Bateu a cabeça? Pode ter tido um traumatismo craniano!
- Calma, pessoal! Tá tudo bem! Não aconteceu nada comigo! Não tem nada quebrado! Não tô sentindo nenhuma dor! Foi só o susto, mesmo! Tô muito bem, graças a Deus!
- Mas por que é que o senhor foi subir no telhado, Seu Julinho!
- Precisava limpar a calha, ué! Acordei às seis, tomei café, varri a calçada, olhei no relógio e ainda eram dez pras sete! Eu não ia ficar esse tempo todo sem fazer nada, esperando dar a hora de vir pra cá!
- Aí lembrei que já fazia um tempão que eu não dava um trato lá em cima e resolvi subir pra ver como é que tava! Sabe como é, ne? Calha entupida de folha de árvore é chuva que vem pra dentro de casa! E isso eu não deixo acontecer! De jeito nenhum!
O detalhe é que o Seu Julinho tem só oitenta e cinco primaveras na bagagem! E, vâmo combinar que, por mais ativo e lúcido que seja, tem certas missões que já não tem mais como enfrentar, né? Tipo subir no telhado pra dar uma geral na calha! Mas vai falar isso pra ele!
- Mas agora tá todo mundo mais curioso ainda, Seu Julinho! Como é que o senhor caiu do telhado e tá aqui, inteiro, ileso, sem nenhum arranhão, sem nenhum hematoma, sem sinal nenhum de pancada?
- Por que em alguma coisa o senhor deve ter batido, né?
- No chão, né? Se caiu do telhado, deve ter se estatelado no chão!
- Tem certeza mesmo que tá tudo bem, Seu Julinho?
- Tá sim, meus queridos! Tá tudo bem, sim! Eu tô ótimo! Vocês acham que o milagre da multiplicação dos joelhos de porco foi o único do dia? Foi nada! Antes teve o milagre da queda do telhado!
- Ah, mas só pode ter sido milagre mesmo! O senhor aqui, Seu Julinho, limpando joelho de porco depois de ter acabado de cair do telhado, assim, de boa, como se nada tivesse acontecido, é milagre com certeza!
- Pois não foi?
- Pois então o senhor trate de contar tudo agora, tintim por tintim! Porque ninguém aqui tá se aguentando mais! Qual foi a desse livramento aí do senhor?
- Então, né? Foi assim: eu tava lá em cima tirando as folhas da calha. E não é que tava tudo entupido mesmo? Tinha que limpar mesmo, viu? E aí aconteceu! Escorreguei no beiral e caí de costas!
- Mas não fui direto pro chão, não! Nem bati nenhuma parte do corpo em nada também! Foi o varal da Tida! Amorteceu a queda! Ah, muito mais que isso! O varal da Tida me segurou!
- Pensa num varal forte! O puro creme do cabo de aço! Fez a barriga até bem pertinho do chão, coisa de um palmo, mas aguentou firme, não quebrou nenhuma corda!
- E aí me jogou pra cima, mas já não tão alto! Na verdade, praticamente me colocou em pé! E foi assim que eu aterrissei! Em pé! Em cima da mesa de passar roupa da Tida! Foi milagre ou não foi?
- Ah, Seu Julinho! Claro que foi! Foi o puro creme da Providência!
- E vocês querem saber de mais uma coisa? Esse negócio de cair do telhado não é novidade pra mim, não!
- Ah, Seu Julinho! Quantas vezes o senhor já caiu do telhado?
- Essa já foi a quarta!
- Ô, Seu Julinho! Me fala uma coisa: a Dona Tida! Como é que ela deixa o senhor subir no telhado?
- Ela não deixa, meu filho! Não deixa de jeito nenhum! Mas eu subo mesmo assim! Escondido dela! Eu espero ela ir pro centro...
E aí o Seu Julinho contou em detalhes cada uma das suas outras três peripécias de voar sem bater asas...
- Eita, pessoal! Dá só uma olhada nisso aqui!
- Rapaz! Não deve ter mais do que vinte joelhos aí!
- Pois é, gente! Com as histórias das presepadas do Seu Julinho, a gente nem se deu conta do tanto de joelho que a gente tava limpando!
- Já tâmo quase no fim!
E não é que chegou o último? E, claro, ficou pro Seu Julinho! Porque tem que respeitar a história - e as histórias - dele!
Domingo, 30 de junho. Avisos do final da missa.
- Pessoal, a Festa das Nações começa sexta-feira! E, como acontece todo ano, a gente da Comunidade São Padre Pio ajuda na limpeza das bandejas em que são assados os joelhos de porco, da Barraca Alemã.
- Lembrando que são quase 800! O pessoal do preparo da aquele talento: coloca eles no forno pra descongelar, deixa mais um pouco pra chegar naquele grill e, pra fechar, faz aquilo que precisa ser feito pra gente ter um joelho de porco de responsa: pururucar!
- Já deu água na boca de todo mundo, né? Só que todo esse processo gera o puro creme do gordurame nas assadeiras! E só dissolve com água quente, detergente e muita esfregação!
- Então vâmo precisar de voluntários pra limpeza! Pra quem tiver disponibilidade e disposição, vai ser no sábado e no domingo! Lá no IBC! Bem cedinho, às 8:00!
- Pra lavar todos os utensílios usados no dia anterior! Pra deixar tudo pronto pra eles começarem tudo de novo pra preparar os joelhos pro almoço! Tâmo contando com todos vocês!
Sabe quem tava disponível e disposto pra encarar a labuta?
Os mesmos de sempre! De cara nova mesmo, só teve a Rosicleide! Mas, pra surpresa de ninguém, são aqueles que todo ano tão disponíveis e dispostos: o Luciano, o Genésio, o Duda, o Dilson, o Ricardo e, é claro, o Seu Julinho!
- Pessoal, tenho que confessar uma coisa pra vocês: quase não vim dessa vez!
- Ah, parou! Parou tudo, Seu Julinho! Não vai falar que o senhor caiu do telhado de novo, né?
- Pelo amor de Deus, Seu Julinho! Precisou de mais um milagre?
- Calma, gente! Não caí do telhado, não! Deus me livre!
- Mas o que é que aconteceu então, Seu Julinho! Porque o Senhor também tem cem por cento de presença aqui na limpeza das assadeiras, não é?
- Desde a estreia da Barraca Alemã! Nunca furei nenhum ano!
- Vâmo, Seu Julinho! Desembucha logo! Que já tá todo mundo morrendo de curiosidade, de novo, pra saber por que o senhor quase não veio!
- Foi a Tida! Me pegou em flagrante lá em cima da casa agora cedo! Pensa numa mulher que ficou brava!
- Aí tirou a escada pra me deixar de castigo lá em cima! E só colocou de volta pra eu poder descer depois que eu prometi pra ela que eu nunca mais ia subir no telhado...