Entre Sem Bater - A Burguesia

Gustave Flaubert disse:

"... o ódio à burguesia é o começo da sabedoria ..."(1)

O romancista francês, com toda a certeza, tinha uma definição clara do que era burguesia. Como viveu no Século XIX, seus paradigmas eram posteriores à redefinição que historiadores, sociólogos e economistas deram ao termo. É provável que o realismo das obras de Flaubert esteja mais para o presente e para o futuro do que para o passado. Assim sendo, temos um termo que a maioria das pessoas que habitam as redes sociais utilizam sem contextualizar.

A BURGUESIA

A origem do termo vem de mudanças na sociedade, com a introdução dos burgos, especialmente na Europa medieval. Logicamente, com a ideia de que nem todos conseguiriam nas povoações ter atividades para sobreviver, sem se aproveitar dos outros. Desta forma, é possível que a maioria dos intermediários, picaretas e golpistas surgiu após estas mudanças na sociedade. Entre o povo, os trabalhadores e os donatários do poder e aristocracia, alguém tinha que se locupletar. Não podemos nos esquecer, sem dúvida, dos parasitas religiosos e outros que era como uma espécie de pelego dos nobres.

Desde que a burguesia se instaurou, muita coisa mudou. Entretanto, mas uma característica que a burguesia não deixou de ter é a de ser canalha e falsa. O axioma(*) de Flaubert contém alguns perigos, especialmente para os neófitos e adoradores de frases que se repetem sem a devida compreensão. Assim sendo, este texto exige a compreensão dos contextos e realidades dos dias atuais e da confusão que as redes sociais provocam.

Podemos afirmar, sem dúvida, que a linha de debate da série "Entre Sem Bater" são como axiomas, que poderiam ser de valor inestimável. E, adicionalmente, neste tema, utilizará de frases que muitos repetem no dia a dia. Ressaltamos que ódio não é uma palavra fácil de usar, e que algum exagero de Flaubert, ou problema de tradução, ocorreu.

A BURGUESIA FEDE

A expressão "burguesia fede" está numa música de Cazuza e é título noutra música-protesto de Funkero. Associações com a palavra, aparece, outrossim, em outras músicas amenas e comerciais como obras de Martinho da Vila e Seu Jorge. Entretanto, utilizaremos estrofes das duas que falam da burguesia, sobretudo com a adjetivação de que ela fede.

Da mesma forma que as pessoas não sabem a origem e nem quem são os verdadeiros burgueses, é difícil imaginar de onde surgiu a adjetivação. Por outro lado, é inexplicável a reciprocidade que falsos integrantes da burguesia retribuem o adjetivo na direção de quem não gostam. Por exemplo, conheci um sujeito calhorda venal que se achava da burguesia e dizia que a esquerda fede. O cara sempre foi um lambe bolas e mendigava até permanência em trabalhos aviltantes, mas se achava de uma classe social que nunca será.

Faz parte, diria o alpinista social e filósofo de Big Brother ... #QueFASE !

ENQUANTO HOUVER BURGUESIA ...

A letra da música "Burguesia" de Cazuza merece uma leitura completa com reflexão e análise estrofe a estrofe. Contudo não é objetivo deste trilha (Entre Sem Bater) interpretar os poetas. Por outro lado, a estrofe a seguir é por demais significativa e importante.

Enquanto houver burguesia

não vai haver poesia

Podemos dizer que este pensamento não coaduna com a frase inicial que surge intolerante e preconceituosa. Aliás, termos como ódio, fede, fascista, esquerdopata e outros são por demais rancorosos e grotescos.

Cazuza nos ofereceu uma crítica mordaz à superficialidade e à hipocrisia das elites. Contudo, além disso, reproduz uma sensação de desconexão entre o ser e o parecer ou um leve pedido de desculpas. Com toda a certeza, o debate do tema, que deveria estar, atualmente, nas redes sociais, submergiu misteriosamente.

MÚSICA E POESIA

Na música, o artista denuncia a burguesia como uma classe que vive de aparências, num mundo de privilégios. Do mesmo modo que Flaubert via, esta casta está distante da realidade crua da plebe. Essa perspectiva de Cazuza continua atual, especialmente quando refletimos sobre a sociedade contemporânea digital. Cada vez mais, as pessoas renegam suas raízes e investem em construir imagens falsas de si mesmas, à custa de sacrifícios.

Vivemos, desta forma, em uma era em que a frieza da realidade não encontra espaço para poesia ou torna-se meme. As redes sociais se tornaram vitrines de vidas com muito Photoshop. Em outras palavras, o que importa não é o que se é, mas o que se aparenta ser. A busca pela validação externa substitui o contato genuíno com quem somos de fato. Há uma pressão constante para moldar-se às expectativas, sejam elas estéticas, profissionais ou comportamentais. Nesse processo, muitos abandonaram suas origens, renegaram sua história e se perderam em versões estéreis de si mesmos. É a tendência de querer pertencer a grupos ou classes que representam status, mas que, na prática, alienam e distanciam.

HIPÓCRITAS FARSANTES

Assim como Cazuza criticou a "burguesia que finge ser tudo", hoje podemos ampliar essa crítica. Nossa sociedade se recusa a olhar para sua própria realidade e prefere adotar uma fachada de sucesso e perfeição. Essa dissociação entre o real e o imaginário produz um vazio existencial, onde o que importa é a estética da vida, não a substância. Por isso, a abundância de comportamentos que priorizam o acúmulo de bens materiais, a ostentação, o culto à fama e ao poder. Como se não bastasse, em detrimento de valores humanitários e cooperativos como a empatia e a solidariedade.

As atitudes resultantes dessas consequências são muitas vezes preocupantes e reina a hipocrisia e o egocentrismo(2). A ganância, o egoísmo e a indiferença tornam-se "normais" num mundo onde as aparências são mais importantes do que a essência. Não há espaço para a poesia, pois a beleza simples e verdadeira da vida é obscura por uma busca incessante pelo status. A realidade cruel, que Cazuza retratou anteriormente persiste, e hoje parece mais forte do que nunca.

As pessoas vestem máscaras e, nesse processo, a poesia, as modificações e a humanidade se perdem.

NA HUMILDADE ...

A música de Funkero tem uma letra longa, com versos de parceiros, mas que retrata somente um contexto. A ideia é de que a burguesia representa todo o mal e coisas ruins que o povo tenta combater. O foco da letra é, por exemplo, a desigualdade social, a hipocrisia e a corrupção sistêmica que a burguesia produz.

Desse modo, além do título, a expressão a palavra burguesia não se repete na extensa letra. Contudo, a introdução demonstra que é dela que se fala, sem indiretas ou bom mocismo como em outras músicas. Inquestionavelmente, as pessoas, especialmente os representantes da burguesia moderna, não terão a mínima paciência em ouvir a música. É mais fácil, sem dúvida, dizer que o gênero musical é ruim e que a letra é incompreensível.

É provável que a raiva dos ricos e das injustiças da nossa sociedade levaram o Funkero e seus "parças" a compor e divulgar este hino.

ODOR DESAGRADÁVEL

A ideia de que a burguesia fede (título) nos remete a um axioma metafórico que sugere a falsa moral e sujeira das ações daquela classe. A cada verso seguinte - e são muitos - a crítica expande-se e demonstra as desigualdades que os anteparos dos ricos proporcionam. Adicionalmente, podemos perceber que os ricos se apresentam como gente de bem mas que são ruins nos seus objetivos. Enfim, tudo fede quando a burguesia se põe a defender seus privilégios e abaixar as calças para as oligarquias.

Funkero tenta dar declarações fortes, fortalecendo sua recusa em aceitar a opressão que a burguesia impinge ao povão. Contudo, as massas(3) estão, cada vez mais, seguindo o que a sociedade digital determina. Para cada dez influenciadores que saem do gueto ou da favela, nove passam a atuar como os pequenos burgueses.

Embora a letra tente lembrar que a marginalização dos pobres pela sociedade não é apenas injusta e cruel, a realidade é outra para os alpinistas. O desenvolvimento de seus talentos e potenciais contribuições, como na canção, sofrerão com os filtros e bolhas. Mesmo que a riqueza e posses materiais de muitos tenham poder, sempre terão alguma contaminação e fedor. E, surpreendentemente, a luta continuará, entre burguês e burguês, com os ricos balançando suas joias e o povo pagando nas "Bets".

BURGUÊS X BURGUÊS

Escrevi, anteriormente, sobre a história do burguês x burguês(4) e como as pessoas veem, falsamente, esta briga.

Seja na música do Cazuza ou do Funkero, temos a representação do que deveria ser uma sociedade consciente. Ou seja, uma sociedade com pessoas que confrontam as desigualdades que a burguesia impõe, independentemente de quem somos. As letras dissecam e criticam a hipocrisia, a corrupção e a indiferença da classe dominante e de seus vassalos. Por outro lado, ao mesmo tempo, defendem a educação, o pensamento crítico e a justiça social, inexistentes ou mínimos nas redes sociais.

Através de imagens poéticas e numa linguagem forte da poesia, as músicas, neste caso, chamam à ação contra as estruturas opressivas.

Cada estrofe ou trecho é um depoimento de como a burguesia com seus dogmas advém da exploração do homem e da corrupção.

Enfim, não é o ódio e nem o exagero da fedentina que fará com que cheguemos à sabedoria. Mas o recado está aí, sem analogias(5), na poesia das músicas, contos, crônicas e poemas. Quase duzentos anos depois, é provável que ainda não conseguimos entender e traduzir Flaubert. E falar que uma pessoa fede, literalmente ou pejorativamente, é falta de civilidade e capacidade cognitiva.

"Amanhã tem mais ... 

P. S.

(*) Na lógica tradicional, um axioma é uma proposição que parece óbvia ou algo do senso comum. A princípio, aceita-se como verdade e serve de base para se avançar nos debates.

(1) "Entre Sem Bater - Gustave Flaubert - A Burguesia" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2024/10/23/entre-sem-bater-gustave-flaubert-a-burguesia/

(2) "Entre Sem Bater - Carl Jung - Egocentrismo: A Epidemia" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2024/08/19/entre-sem-bater-carl-jung-egocentrismo-a-epidemia/

(3) "Entre Sem Bater - Sidney Silveira - As Massas" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2024/10/22/entre-sem-bater-sidney-silveira-as-massas/

(4) "Burguês x Burguês - Nós não Merecemos" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2023/02/10/burgues-x-burgues-nos-nao-merecemos/

(5) "Entre Sem Bater - Sigmund Freud - Analogias" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2024/10/21/entre-sem-bater-sigmund-freud-analogias/