Amadeus, o esquizofrênico.

O dia estava quente e ensolarado, com um mormaço insuportável. Afinal, não suporto o calor; prefiro o frio, pois geralmente consigo me concentrar mais nas coisas que faço. Naquele momento, estava bastante inerte e não tinha muita noção do que acontecia ao meu redor. Estava cansada, e minha mente havia paralisado um pouco; só queria dormir. Havia chegado de viagem e fui à casa de uma pessoa conhecida, mãe de um amigo da minha família. Era uma casa humilde, assim como as pessoas que a habitavam. Fiquei desconcertada ao entrar, mas, como não aguentava o calor, fiquei na curta varanda. Sentei-me num banco perto de uma tábua quadrangular de madeira, sobre a qual havia algumas peças de dominó. Analisei-as, supus as jogadas e as organizei, pois estavam um pouco embaralhadas. Fiquei um tempo sentada, consertando a ordem das peças, apática. Pedi um copo d'água e senti-me um pouco mais aliviada. Algumas pessoas conversavam no ambiente, e eu as observava; afinal, eu era alheia a elas, então pouco importava a minha presença. Costumeiramente, canso-me de socializar; falar por falar me extenua, mas simpatizo em apenas ouvir.

Depois, notei um senhor de pele escura, com cabelos brancos nas laterais da cabeça, já calvo. Ele andava de maneira estranha, um pouco enrijecido, com o olhar vago e fixo. Ouvi alguém comentar: “Ali vai o perturbado.” Imaginei que ele seria o ex-marido da dona da casa; ela estava cuidando dele, depois de muitos anos separados. Na época em que eram casados, ela sofria violência doméstica dele. Ouvi relatos de que, em seu estado normal, ele era um homem rancoroso e de difícil convivência: irascível, ardente, amante, vingativo e egoísta. Seu filho, que é um dos mais próximos do meu círculo social, é o seu completo oposto; geralmente, é calado, cismado, seletivo e observador, com um temperamento mais contido e melancólico.

Esse senhor conturbado sentou-se numa cadeira ao lado do sofá, e eu estava em pé, próxima. Ele começou a conversar com as pessoas ao redor, dizendo frases desconectadas, mas parecia ter certeza do que estava falando, como se tudo se encaixasse e ele fosse são. As pessoas não sentiam repulsa por ele, mas sim uma espécie de estranhamento e compaixão, e um diálogo inanimado para com ele. Ele tinha surtos de esquizofrenia e sofria com isso, sem saber; ou, então, os outros é que sofria por ele não saber que estava sofrendo e que poderia morrer ou ficar louco de vez. Desesperadamente, ele tinha alucinações de situações do passado. Diziam que era consequência da vida que levara. Talvez fosse.

Após um tempo, ele me notou e começou a conversar comigo, e eu tentava, com muito esforço, compreendê-lo. Ele me olhava nos olhos, sem hesitação. Seus olhos eram bonitos, de um castanho claro brilhante, com a pupila miótica e cílios evidentes. Eu nunca imaginaria que ele realmente tivesse sido a pessoa de quem me falaram. Era um suplício. De repente, começou a me dar conselhos, dizendo coisas como: “Estude e você conseguirá um bom emprego.” Depois, segurou meu antebraço. Fiquei um pouco assustada, mas não o impedi. Ele disse que eu teria um bom futuro, e eu sorri. Mencionou que os vinte anos eram uma boa idade e me alertou para tomar cuidado com as amizades: “Às vezes, as pessoas confundem as coisas.” Pausou, olhando fixamente ao redor, e continuou: “As pessoas compreendem mal o que a gente fala; damos uma moral e, em troca, recebemos a desmoral.” Continuei olhando para ele e tentando, em meio ao calor, entendê-lo. Pensei na possibilidade de suas memórias surgirem como um turbilhão. Talvez quisesse dizer algo sobre si mesmo, sobre o presente ou o passado. Acrescentou: “Damos respeito às pessoas, mas elas nos dão o desrespeito.” As pessoas concordavam com ele, mas mais por não deixá-lo falar sozinho ou por pena do que pelo fato de ele estar dizendo uma provável verdade; ninguém refletia exatamente sobre o que ele falava. Perguntavam para ele: “Lembra de mim?” E ele dizia: “Lembro sim, é claro,” paralisado. Mas as pessoas respondiam depois: “É claro que você não se lembra de mim.” Comentavam que ele lembrava mais de quem fazia parte do tormento de seu passado.

Pelo visto, ele gostava de utilizar palavras antagônicas na mesma frase, como se fossem símbolos absolutos a demonstrar o absurdo. Continuamente usava os termos “moral” e “desmoral”, como uma mania, ou talvez quisesse transcender sua linguagem na ânsia de que compreendessem a profundidade através dessas ínfimas palavras. Questionei-me sobre o que seria a moral para ele. Depois, continuou me aconselhando: “Não conhecemos as pessoas de verdade; cuidado com quem você conversa.” Fiquei surpresa e assenti às suas palavras com a cabeça.

Logo após, ele parou de falar comigo e ficou inativo, débil. Já era hora de ir embora. Fomos para o lado de fora da casa e ele também saiu. Convidou uma pessoa para jogar dominó, apontando para a mesa, mas não havia mais tempo para isso. Disseram que ele era muito bom no jogo e tinha noção dos números. Acenaram para ele em despedida, chamando-o de Amadeus. Lembrei do compositor austríaco Mozart e pensei no estado de sua morte: pobre e esquecido, enterrado numa vala comum. Comparei-o ao senhor castigado e esquizofrênico que me deu conselhos mais lúcidos, embora com uma solidez embaçada.

Mariizans
Enviado por Mariizans em 22/10/2024
Reeditado em 22/10/2024
Código do texto: T8179725
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