As três Marias
Como surgiu vida a partir do inerte? A ciência talvez nunca descobriria, pois isso estava além dos desígnios dos homens. Todavia, a humanidade, enquanto ser vivo, foi presenteada: veria a vida germinando e seria ativa nisso. Era em meio a essa dádiva que Ísis estava imersa.
Seu companheiro perdeu o sopro da vida, mas o passara adiante. Cumprira o fim da existência segundo a seleção natural. Um luto que talvez Ísis só tenha superado por aquelas em seu ventre. Seu amado ainda era vivo em sua descendência e ela não via a hora de falar às filhas sobre o pai maravilhoso delas.
Eram trigêmeas e a mãe não pensou duas vezes: homenagearia a constelação das Três Marias. Seriam nomeadas como Maria Mintaka, Maria Alnilam e Maria Alnitak. Ansiava tê-las nos braços e mostrar no céu as estrelas que representavam, para lembrá-las de serem tão brilhantes quanto os astros.
Aquela gravidez foi resultado de anos tentando. Após o atropelamento do esposo, a mulher pensou ser o fim. Entretanto, foi agraciada com um milagre, pelo qual faria de tudo.
Com a aproximação do parto, a rotina de Ísis envolvia os preparativos finais para as crianças. O quarto delas era constantemente modificado. Andava agitada, pensando em erros no dormitório. Frequentemente, chorava pela saudade do finado marido. Devido às dificuldades, tanto seus pais quanto seus sogros estavam assistindo-a.
Anteriormente, era cozinheira num quilo do Centro. Alto movimento, por razões óbvias. Estava há semanas afastada daquela muvuca, quieta no seu bairro residencial. Assim vivia, tentando se convencer de estar melhor do que há um ano.
Anoitecendo, recitava um conto. Queria que as três Marias conhecessem o prazer de escutar uma história. Nesses momentos, reacendia sua vontade de conhecer lugares encantadores. Fazia o possível, viajando por meio da alimentação. Sua Bíblia era um livro chamado “A volta ao mundo em 80 receitas”.
Uma prática que Ísis considerava necessária e tentava adquirir naquele momento era escutar música. Sabia ser científico tratar-se de um hábito saudável. Além disso, não discordaria do ditado sobre remediar a alma enquanto seu espírito ansiava tratamento. Aliava sua viagem gastronômica a uma viagem musical e, assim, introduzia às filhas toda a diversidade terráquea.
O parto foi um borrão. Que estranho! Acontecera violência obstétrica? Lembrava-se das estrelas: constelação de Órion e três Marias em seu cinturão. Como enxergaria o céu num hospital? Bizarro...
Esperou em vão alguém voltar com as crianças para amamentação. Por mau pressentimento, perguntou onde estavam suas filhas.
– Hã?! Você não veio investigar ascite idiopática? – responderam.
O corpo de Ísis travou. Não sabia o que fazer e se desesperou. Queria as meninas que nunca viu, porém, sabia ter carregado no ventre. A continuação do marido que tão cedo lhe arrancaram. Não aceitaria tal mentira tosca.
– Elas morreram? – balbuciou chorando. – Querem esconder de mim, mas aguento. Podem falar…
Ninguém mencionou natimortos, insistiram na ascite. Ísis entrou em pânico e derrubou tudo ao redor. Por que não contavam a verdade? Não houve escolha além de sedá-la. Novamente, Ísis viu a constelação de Órion com as três Marias em seu cinturão.
Quando acordou, decidiu jogar com eles e aceitou a ascite. Desse modo, permitiram a visita de seus pais.
– Já estávamos apreensivos com a ascite idiopática, agora surto psicótico… – A mãe praticamente chorava.
– Vai ficar tudo bem, querida. – disse o pai preocupado.
Seus progenitores não mentiriam, não é? Ainda mais depois do surto… Era nisso que tentava acreditar. Algo de extraordinário acontecia, era a única explicação. O pânico a dominou. Conseguiria lidar com o sobrenatural? Naquele instante, soube como era o impulso da automutilação.
Teria realmente se cortado caso, no instante seguinte ao qual foi abandonada, um portal não tivesse se aberto. De dentro dele, saiu um rapaz desconhecido e apressado.
– Você deve estar confusa. Todavia, entrando por esse portal comigo, esclareço tudo. – disse confiante.
Considerando a loucura daquele dia, Ísis não hesitou em atravessar o portal. O estranho prometera a verdade e era exatamente o que desejava. Onde estavam as três Marias afinal?
Do outro lado, havia um escritório organizado de forma bem inusitada. Diante de poltronas tão exóticas, suas pernas amoleceram. Era o cansaço batendo. O estresse emocional somado ao pós-parto não fez bem. Pois, sim, sabia que dera à luz, aquele desconhecido estava ali para confirmá-lo.
– Sinta-se em casa. – Ele falou.
Normalmente, Ísis desconfiaria. Porém, naquele momento, só queria pular a enrolação e saber o que realmente importava: o paradeiro das filhas. Por isso, acomodou-se no estofado calada. Foi como relaxar na maciez das nuvens. Seu corpo distensionou só se apoiando. Queria dormir ali e encontrar suas lindas três Marias no mundo dos sonhos.
– Meu nome é Rígel, como a estrela da constelação de Órion. – O desconhecido demonstrava um pouco de surpresa. – Desculpa, esqueci de me apresentar.
– Tudo bem. Cadê minhas filhas? – A mulher estava prestes a retornar ao estado de pânico.
– Por onde iniciar… – Rígel quase parecia arrependido de chamá-la para o portal.
– Só começa logo! – Ísis estava prestes a chorar.
Vendo a mulher tão debilitada, o jovem se aproximou dela, pediu licença e deu um abraço aconchegante. Como diria Cazuza, ali dois corações se encontraram. Para quem escutasse de perto, perceberia os batimentos se misturando até o mais acelerado chegar na frequência do mais calmo. Nesse momento, Ísis finalmente sentiu estar diante de alguém que a ajudaria naquela dificuldade e ficou tranquila para ouvir o que ele diria.
– Sou um detetive do planeta Solo e acredito que suas filhas foram vítimas do tráfico interplanetário de crianças. – Rígel estava preocupado com a reação da convidada, mas ela estava impassível. – Pegarei água para ti, porque a história é longa.
Após assegurar-se de que a mulher estava bem, continuou:
– Já ouviu falar dos deuses astronautas? Eram seres de outros planetas visitaram a Terra há milhares de anos e ajudaram com construções arquitetônicas. Pelos nativos, foram considerados deuses. Bem, alguns humanos voltaram com eles e passaram a viver em Solo. Consequentemente, algumas comunidades possuem interesse em comprar crianças terráqueas se tiverem problemas de fertilidade.
Dessa vez foi impossível Ísis não arregalar os olhos. Se o acento fosse menor, talvez tivesse se desequilibrado e caído.
– Órion é um feiticeiro procurado em todo o planeta Solo. É o cabeça do tráfico de pessoas há muitos anos. Eu, inclusive, vim parar aqui por causa deles… – Ele baixou a cabeça, talvez para esconder a tristeza. – Resolvi virar detetive para pegar esses criminosos e fazer justiça não só a mim, mas a todos os bebês traficados. – Levantou a cabeça e continuou com firmeza. – Enfeitiçaram todos ao seu redor para pensarem que você nunca teve filhos. Entretanto, por algum motivo, não conseguiram enganar você.
– Estamos então no seu escritório em Solo? E como você fala a minha língua?
– É sério que essas são as suas perguntas? – Rígel pareceu surpreso.
Parando para pensar, Ísis também estranhou o teor de suas dúvidas. Contudo, ter uma explicação que aceitasse sua gravidez, por mais estapafúrdia que fosse, aquietou sua alma num nível a ponto de enxergar furos de roteiro. Então ela insistiu para ele responder.
– Sim. Tenho um equipamento que abre portais interplanetários, é mais rápido do que ir de nave espacial. E, bem, estou tentando entrar em contato com vítimas de Órion há meses. Por isso, aprendi o idioma de… onde ficava aquele hospital mesmo?
– Curitiba. – A voz dela soava desanimada. Se estavam atrás daqueles dois há tanto tempo, não seria ela a conseguir pegá-lo. – Quantos anos você tem mesmo?
– Dezenove. – respondeu ele, sabendo que o dado indicava o período de impunidade do crime.
Ao ver Ísis novamente entristecida, a alma de Rígel estraçalhou. Desejava ajudar aquela mulher, vítima da mesma sina da mãe biológica dele. Por isso, aproximou-se dela e disse decidido:
– Encontrarei suas três Marias, Ísis. Eu prometo. Não são só Órion que faz feitiçaria por aqui. Eu também faço. – A mulher sorriu novamente, enchendo-o de satisfação. – Conheço uma magia de viagem no tempo por meio de lembranças. Se você concordar, podemos usar suas memórias para localizar o paradeiro deles.
A felicidade que passou a correr nas veias de Ísis fez com que se levantasse num salto. O sorriso em seus lábios parecia querer extravasar a fronteira do rosto. Instintivamente, beijou a testa de Rígel e pulou de alegria.
– Só um minuto, vou procurar meu livro de feitiços. – O detetive se retirou com uma empolgação ainda maior do que a da sua convidada.
Cada segundo longe daquele homem foi uma tortura. Por mais que pegar instruções em outro cômodo não fosse demorar, Ísis roía as unhas em ansiedade. Quando o detetive voltou, a mulher quase deu-lhe uma bronca. Felizmente, se conteve.
– Tergum in tempus. – O feiticeiro pronunciou em voz grave e um portal surgiu.
Para que Ísis sentisse maior segurança em ir rumo ao desconhecido, Rígel deu sua mão a ela. Realmente funcionou, pois uma calma invadiu a alma dela imediatamente. De alguma forma, sabia estar segura ao lado daquele homem. Era a aurora de uma forte colaboração.