A ver estrelas

Penso se nossas almas se veem como teus olhos me acham. Talvez você me olhe como se olha uma planta, um tubérculo ou o seu nome na lista de classificação final de um concurso. É difícil saber. Não fui à praia mais um domingo. Coleciono desmomentos, essa palavra emprestada que já fiz usucapião. Os nãos me orientam para sim. Me nego a vida, que me devolve a vida em dobro: a ânsia. Cansei dela. Agora me dê o tédio de possuir. Penso se isso é aplicado a pessoas também. Não quero ser as cinzas que já foram carnaval. Quero ser colorida todo santo dia. A lantejoula indiscreta na tua blusa branquíssima. O batom na tua cara límpida. A vida em teus dias. A saudade e o reencontro. Os cabelos em teus olhos. A loucura em tua solidez. A banda em tua rua. O riso que vem depois do pranto. A fonte cheia após as chuvas. A terra e também o fruto. A rosa em teu deserto oceânico. Quero ser tudo aquilo que puder escrever.

Ontem estive mal a ponto de dizer que estava mal. Saí de casa de última hora, como pretendo me treinar a fazer, e pude atestar que toda diversão é — antes de qualquer coisa — não divertida. Corri entre as criancinhas, entre os olhares de esposas afetadas e maridos sonsos, entre jovens góticos e coquette, entre bebês e avós. Corri para nada. Para estar só. Para ler um e-mail enquanto a noite estrelada se estrelava em mim. Mas eu a vi, sim, e ouvi. Amai para entendê-las. Observei os casais, os amigos, as famílias. Os sozinhos. Eu sou sozinha também. Estávamos sozinhos juntos. E que vazio naquela sala cheia. Me sinto muito observada como se fosse eu uma espécie de bicho arredio solto no meio do shopping. E essa é precisamente a melhor definição sobre ontem. Não sei por que me sinto tão olhada quando não há razão para isso, pois não era eu quem estava vestida com uma cinta-liga branca e laço vermelho na cabeça. Poderia. Talvez passasse despercebida.

Há uma não palavra em mim que me define. Ela que me escreve pra fora. Te rabisco como uma caneta que suja a mão de vermelho ou azul. Explodo. Mas não sou descartável. Tu rejeitas o papel e as linhas da minha pele. Ambos aceitam caracteres. Eu só não desenho na palma da tua mão porque não sei se você deixa. Era pra ver se o suor te entregaria a mim.

Mãe beijava minha mão antes de ir para a faculdade e dizia pra eu guardar o beijo. Eu abria de pouquinho e via o batom cobrindo toda a extensão de uma mão curumim. Fechava. Era traição abrir. Dormia com câimbra, mas não abria. O suor borrava o batom, que permanecia, e ela se enchia de dó. Passava seu perfume no travesseiro pra eu dormir sem chorar. Mas eu não chorava por isso. A pior coisa do mundo é uma criança que entende. Nasci compreendendo. Hoje não sei de nada.

Queria comprar um batom-cereja pra usar no topo do seu rosto. Descer e carimbar sua boca. Apreciar meu trabalho e ir embora. Mas não sei se você esperaria com os lábios cerrados, ansiosos, pela minha volta. Ainda tenho guardado o abraço que me deu, tem o formato de um vestido branco e justo, o meu. Visto para que os seus braços não cansam de esperar.

Hoje vi de perto aquele senhor saído de uma fotografia social. Um senhor do tipo que excita o trabalho de Sebastião Salgado: fotógrafo, mas sobretudo ladrão. Diferentemente de Caravaggio, que era assassino — mas sobretudo pintor. Eu, melhor do que ninguém, sobretudo observadora. Ele não deve ter juízo, o que demonstra a minha pequeneza em concluir que eu posso concluir sobre o outro. Talvez nem sobre mim mesma. Em minha defesa, ele falava sozinho. Em sua defesa, eu também. Só ganhei porque eu falo na cabeça. Ele, pra fora. Lê alto como se estivesse aprendendo a ler. Talvez esteja. É o mesmo livrinho amarelo, rasgado, provavelmente sem capa e que a cada reencontro parece faltar uma página. É um senhor de chapéu de palha sob a lâmpada do ônibus. Roupa de roça. Conheço, meu avô tem as mesmas. É preciso de muito trabalho pra merecer ostentar uma camisa surrada. Não sei se ele anda com suas coisas ou se as coisas andam por ele. É carregado pelo saco cheio de histórias. Lá deve ter outra blusa, talvez a capa do livro, uma faca remendada com borracha e um pano velho no cabo, uma banana esquecida. A identidade amassada. Uma carteira roída. Não vi dor nele. A dor é toda minha. A tristeza é minha. Quem tem dó de mim sou eu, por enxergar, e não somente ver. Quem enxerga, escreve. Criei uma história que roubei de um corpo alheio. Mas não tenho rios de dinheiro, não falo francês, não sou premiada, sou tão ninguém quanto os outros. Me entristece escrever sobre ele, que me rouba os olhos, mas como poderia não escrever? Assumo os pecados. Sigo. E ele também.