Será que o cego sou eu?
Será que o cego sou eu mesmo?
Esta semana encontrei com um dos meus primos na rua e no diálogo que travei com ele e como tinha mesmo que escrever um artigo para o jornal, aproveitei este tema para fazê-lo.
Será que o cego sou eu mesmo?
Nasci cego, totalmente cego. Nunca enxerguei nada. A luz do sol, as estrelas, as belezas da natureza em que tanto falam. Pelo menos com a visão, não. Porém, nunca sentir falta da visão, pois se nunca a tive, como iria sentir falta? Nunca tive a menor vontade de enxergar, pois tudo que tive vontade de fazer até hoje eu fiz, me acostumei com a ausência da visão e jamais tive inveja de quem a tem.
Sou o primeiro filho dos meus pais, que depois de mim ainda tiveram um segundo, e que também nasceu cego. Meus pais pararam por áí, não quiseram mais filhos, com medo que viessem mais cegos.
Até os 17 anos, nunca tive contato com a escrita e nem com a leitura, nem com a Filosofia, nem com a Ciência, nem com a literatura, e tantas outras. Era analfabeto, mas analfabeto apenas das letras, não analfabeto funcional, e digo isso sem falsa modéstia e com orgulho, graças a meu companheiro de lutas, o rádio de pilhas. Foi através do rádio de pilhas que tive as primeiras noções do mundo que me cercava. Ouvia as vozes bonitas dos locutores, as belas músicas que tocavam nos programas, as notícias de política, da economia, das guerras, da violência, e do esporte, que me chamou a atenção logo cedo. Aprendi muita coisa ouvindo rádio. Inicialmente um grande rádio que meus pais tinham, e depois, em um rádio portátil, só meu, presente do meu pai, um para cada filho, já que o velho rádio grande já havia se cansado e parava de vez em quando.
Naquela época eu já sofria discriminação e preconceito, mas eu nem sabia o que era isso. Quando eu ouvia os comentários das pessoas sobre coisas que supostamente eu não poderia fazer, eu achava absolutamente normal, pois eu era cego, ou eles pensavam que eu era, e eu também pensava assim.
"Coitado, nunca vai arrumar uma mulher"! Dizia alguém, e eu até concordava. "Olha, o ceguinho"! Dizia outro, e eu também concordava, pois a final de contas eu era cego e ainda era pequeno.
Heis que aos 17 anos, surgiu a oportunidade de eu e meu irmão estudar, mas a escola ficava na capital, e precisaríamos ficar internados, se realmente quiséssemos estudar. Este foi um grande problema, mas minha mãe decidiu nos dar esta oportunidade, e mesmo contra a vontade de meu pai, deixou-nos internados na escola de cegos do maranhão e voltou sozinha para o interior. Talvez ela acreditasse que a gente não ia gostar e em breve pediríamos para voltar, mas ela, se realmente pensava assim, enganou-se.
Costumo dizer que foi a partir daí que eu nasci. Aprendi a ler, a escrever e passei a ter contato com tudo que não tinha antes, e o mais importante, passei a conviver com outras pessoas cegas, pois eu pensava que só existiam eu e meu irmão. Passei também a saber o que é discriminação, preconceito, piada de mau gosto e tantas outras coisas do mesmo gênero. Aprendi a ter vontade própria, a escolher minhas coisas de uso pessoal, a ter opinião, praticar esportes, arranjar namoradas, sair com os amigos, passei a fazer o que me dava vontade. Criei minha identidade própria, formei minha personalidade, descobrir meus sonhos, os tornei realidade.
Dediquei 25 anos da minha vida buscando minha formação: ensino fundamental, ensino médio, duas graduações, Filosofia e Pedagogia, duas pós-graduações, prestei 7 concursos públicos e fui aprovado em 6. Realizei neste período vários cursos para melhorar minha formação, entre os quais, espanhol, inglês, e vários na área da informática, e muitos outros. Constituir família, tenho 4 filhos. Ajudei a melhorar as instituições de e para cegos em nosso estado, participei da fundação de algumas outras, atuei como dirigente, e atualmente, tenho 2 empregos, ambos através de concurso público, e sou o único responsável pelo meu sustento e de 2 dos meus 4 filhos.
Mas do que adianta isso tudo, se pessoas, principalmente da minha família continuam me tratando como antes? Agora eu vejo a forma discriminatória e preconceituosa que a sociedade me trata, mas já aprendi que eu devo ser mais um a ensinar a sociedade. Os preconceitos e discrininações que eu sofro da sociedade me encomodam muito, mas como disse, com tudo que eu já aprendi, cabe também a mim próprio, ajudar a mudar este comportamento. Porém, o que ainda hoje me encomoda, é a indiferença da minha família. É claro que não estou generalizando, pois aqui e acolar, há uns 2 ou 3 que até param para conversar, houvem minhas opiniões, e me tratam como um cidadão, mas a grande maioria é indiferente, e continua com as mesmas práticas preconceituosas e discriminatórias de antes.
É importante ressaltar que nem de longe quero ser tratado como herói, o mais inteligente da família, acima da média, ou qualquer coisa nestes termos, pois na verdade não sou nada disso, só queria merecer o respeito e a compreensão de minha própria família, que não respeita e nem considera minhas conquistas pessoais, mas não só isso, faz que não sabe, ou falam um monte de bobagem no intuito de apenas me agradar.
Faço questão de repetir aqui, para não ser injusto e nem generalizar, uns 2 ou 3 não se comportam assim, mas o mesmo não posso dizer da grande maioria, pra minha tristesa.
Mas voltando ao meu encontro com meu primo desta semana, o qual prefiro não citar o nome e com o qual fui criado quase junto, ao me ver na rua, após algum tempo sem contato, travamos o seguinte diálogo:
"Olá douglas, como vai? Quanto tempo cara". "E aí meu amigo, o que tu andas fazendo, por que nunca mais apareceu"? "Tenho trabalhado muito, quase não tenho tempo. E tu"? "Eu também tenho trabalhado bastante... "Trabalhado? Trabalhando de que, Douglas! Que conversa é essa! Uma pessoa como tu não pode trabalhar"!
Me despedi e fui embora, e ele nem notou a minha decepção e tristesa.
Tempos atrás, também com um primo próximo, que pretendia ingressar na política, foi a casa do meu pai pedir apoio e tendo me encontrado na entrada, me fez a seguinte pergunta:
"Ei Douglas, tu vota"? "E por que não"? "Porque tu não enxerga"!
Com este nem fiquei triste. Achei engraçado e deu pena, pois era de se esperar, que alguém que sonha em ser político e pretende representar o povo, pelo menos soubesse que todas as urnas eletrônicas estão adaptadas com som e com o sistema Braille, tendo ou não cego para votar. Percebi também que ele não enxergava a um palmo do nariz, pois se não fosse assim, também já teria visto o mesmo sistema braille na seção onde ele próprio vota. Graças a Deus, ele desistiu e o povo se livrou de mais um que não sabe nada sobre o povo que deseja representar.
Uma prima, vendo o número de viagens que costumo fazer durante o ano, umas a trabalho e outras a passeio, quando estou de férias ou de folga, me fez a seguinte pergunta: "Teu pai só trabalha pra pagar tuas passagens? O que tu vais fazer nestes lugares por onde tu andas, só jogar conversa fora? Eu queria ter uma vida fácil dessa, só viajar, comer e dormi". Aqui lembro que quando eu passei no primeiro concurso, minha mãe promoveu um almoço, e esta prima estava presente, mas pelo visto, nem sabia o que se estava comemorando!
São várias as situações em que meus próprios parentes ignoram a minha presença nas conversas, nas festas de famílias, e nos mais diversos ambientes, que se eu fosse lembrar os constrangimentos pelos quais já passei, este artigo tomaria todo o jornal, mas para finalizar os casos, vou aproveitar para contar mais um.
Antigamente, quando ainda me convidavam para as comemorações em família, eu jamais fui colocado pra comer junto com os demais convidados. Sempre tinha uma mesinha velha na cozinha, onde costumavam me alojar e não era raro as pessoas falarem que tinham comido uma coisa e eu tinha comido outra totalmente diferente.
Certa vez, eu e meu irmão, fomos convidados para um casamento de um parente próximo. Desta vez o caso foi trágico e ao mesmo tempo engraçado: eu e meu irmão tínhamos um garçom só pra nós! Mas vocês podem está se perguntando, mas qual o problema nisso? A,eu conto! O problema era que o garçom só podia servir água mineral, fanta laranja e salgadinhos, enquanto os demais podiam comer churrasco, tomar cerveja e vários tipo de caldo.
É importante lembrar, que poucos são aqueles que conseguiram êxito nos estudos, poucos os que trabalham através de concurso público e menos ainda os que quando têm problemas não tenham procurado meu pai para dar uma forcinha, mas nem por isso procuram dar o devido respeito ao filho do velho, mas tudo bem, talvez seja realmente por isso que não conseguem me ver. Não quero com isso tirar os méritos daqueles que trabalham, estudam e possuem uma vida digna, mas assim como são respeitados, deveriam fazer o mesmo.
Bom, mas para finalizar, agora eu prometo, vou contar o último: em certa festa promovida na casa de praia de um primo, eu e meu irmão fomos convidados, meu irmão para atuar como músico e eu, só como convidado mesmo. Uma de nossas primas, com formação em direito e juiza em uma comarca do interior, passou várias vezes perto de mim, falou com todos que estavam na festa, e a noite, quase no final, talvez não tendo mais o que falar e já tendo falado cansativamente com todos os presentes, se dirigiu a mim e meu irmão, e disse-nos o seguinte: "ah! Que maravilha! Tudo bem com vocês? Não tinha falado porque não tinha visto vocês, chegaram agora"?
Por essas e por outras, me pergunto: será que o cego sou eu mesmo?
Escrito por Douglas Valter Soares